NOCTURNO - POEMA VISCOSO


Tenho os poros abertos à flor da noite e escrevo.
A caminho da primeira vez num emprego parcial
que talvez me ajude a remar na minha tormenta,
todo ele nocturno, o emprego, noctivagarei a minha escrita
muito antes que a minha procelosa mão realmente a teça.
lkj
Pastosa, a gente desliza pesada pela cidade amortecida.
Cumprem-na somente, agora nocturna e agonizante,
pedintes ocasionais viciados em cerveja,
brasílicos imigrantes perdidos e deslumbrados com tudo,
que me abordam inquisitivos à procura da rua desconhecida
e esses jovens que permanecem encostados às altas e graníticas paredes,
de parda pátina, nessa espera pegajosa de olhos no vácuo vidrados
espera não se antecipa por que viscosa esmola.
lkj
A avenida cresce para mim e, ladeando-a, avultam negras silhuetas nas janelas liminosas
mais inacessíveis ao meu olhar horizontal sobre quem tão raro passa.
Meu olhar mais oblíquo quando não quero olhar quem passa, mas só o chão.
Meu olhar que vai passando por quem passa e não quer olhar-se em quem passa.
Cabe-me hoje vigilambular por um recanto da cidade onde se trocará velhice galopante
por alguma alienação musical, alguma promissora troca de olhares
e benevolências de curto prazo, antes do regresso à pesada e costumeira solidão velha.
lkj
Ei-los que chegam como escorrências humanas a desaguar na foz de onde eu estou.
O velho grisalho, de barba à renascença e dente de narval,
morto por ser escutado como quem sustém a infecta solidão e a disfarça,
a mulher obesa que vende rosas pela longa noite, que quer entrar e mo pede,
e me desabafa da infecção num dente que a traz em trabalhos
e mo mostra, abrindo muito a boca,
apontando a exodontia e o bolbo infecto na mandíbula inferior,
as duas mulheres de olho lobrigador de um macho jovem impossível,
sempre lúbricas, sempre prontas, sempre sós, sempre à caça,
conformadas que a espécie ansiada raie a extinção e esperançosas de que não raie,
o casal assimétrico (ele quase nos setenta, grisalho e com dinheiro
e ela, jovem e bela ainda nos trinta, cheia de charme e atributos no rosto cuidado
no corpo maduro.
Saem, ele ajuda-a com o casaco de peles, está frio,
morre por beijá-la e beija-a.
Ela abandona-se duas vezes àquele amplexo azeite com água.
Acompanha-a até a um táxi e regressa à foz onde eu estou, reentrando.
Dorme sempre as noites com a mulher.
O dia é para derramar-se naquela exigência jovem e cara.)
O homem que decide que empatizou contigo,
cheio de wiskey e do respectivo intenso hálito,
e me resume uma vida de cinquenta anos,
três casamentos, três filhos e três casas adquiridas
tudo deixado para trás
como despojos fatais de esse lastro da liberdade que é o equívoco de ter casado.
Hoje vive com a mãe e é feliz.
lkj
Não pára o afluxo de naufragos felizes alcançando a foz de onde eu estou,
porta humana, concedendo um cartão e a passagem para um Hades onde se dança,
e onde se bebe.
Fluem os que chegam sós e cedo partem para uma noite embebida em pele,
na voz gemente de fêmea clitoriana por ebulição e dinheiro,
oficiantes corpos de delíquio.
Fluem os que chegam sós e partem ainda mais sós.
lkj
E é num acanhamento com álcool e despedidas mais calorosas
quanto mais anónimas que todos vão partindo residuais,
apertando-me muito as mãos enquanto se escoam.
Ei-los, pobre gente!, que reentram na noite fechada de um Porto nocturno
há muito deserto, há muito defunto.
lklj
[O velho do dente de narval deu-me um euro de gorjeta,
estava excitado e falador, disse que a coisa ali já fora bem mais animada.]
[A velha de lúbrico olho lobrigador disse que se pudesse me levava.]

Comments

antonio ganhão said…
Somos os defuntos que habitam as nossas cidades, eu diria mais: que habitam o nosso tempo. Mas se a� n�ufragos encontram uma foz, talvez no teu vigilambular roubes solid�o aos que passam, talvez sintam que por momentos n�o foram simples escorr�ncias humanas... gostaria de saber mais desta tua escrita noct�vaga.
Dias cinzentos e noites escuras. Esperemos que o sol nasça. Tu mereces.

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