AMIGOS E QUERUBINS CABRÕES
Está efectivamente frio. Um frio impróprio.
Os meus amigos, os meus amigos!...
Não sei se um coração como o meu, depois de ter ensaiado converter para Cristo
centenas, senão milhares de jovens, poderá, sem vitimar-se no processo,
viver uma amizade feliz.
lkj
As disputas, os ciúmes, as invejas, aquelas exclusões tácitas e concertadas,
aqueles ostracismos orquestrados, aquelas incompreensões,
fazem da amizade uma coisa espinhosa e irregular. Rugosa até.
Não há paciência para desfazer todos os equívocas que a insegurança engendra.
Vêm-me à mente flagrantes momentos do estar com os meus amigos de há séculos,
aqueles a quem já vimos o cu e em nada nos podem surpreender
nem sequer na compreensível mesquinhez e estado de alerta ultradefensivo.
Isso de estar com é como quem diz. Não escutam, portanto, não estão.
lkj
Como aqueles alunos para quem somos paredes somente.
Não te escutam.
Regressado do Brasil, não tinham perguntas,
não exprimiam curiosidade. Deixaram-me a falar sozinho,
literalmente só, ali, no bar, a matutar nesse drama da incomunicação.
Talvez eu goste de mais de holofotes e de atenções,
e goste de menos (ainda não vi os bloggers portugueses aderirem ao que dizem
os melhores prontuários da língua portuguesa a respeito do de mais/demais,
por isso resolveram o problema grafando sempre demais, embora nunca grafem demenos,
o que seria bem mais lógico) do segundo plano quando com os meus amigos.
Enfim, brandem os seus cigarros, dizem umas coisas. Alguém ri. O tempo passa.
E não houve conversa. O fardo do que eu teria a dizer,
a contar ou a desabafar não passa.
kjh
Que se fodam! Se a amizade é esse desinteresse, estou fora.
O Brasil não é exactamente o céu. Mais de metade do que eu dizia,
os amigos que fiz lá não o entendiam, mas o envólucro afectivo era sempre intenso,
sempre expressivo. Gostar de uma pessoa, acolhê-la bem é acolhê-la bem.
Em Portugal, eu tornei-me ininteligível para aqueles que eu supunha amigos.
Cavam-se distâncias. Há também eras glaciares para as amizades.
Devo aceitá-lo. Sempre fui um solitário comunitário.
Esforcei-me e sofri por levar Cristo, o Cristo por Quem nunca escondi estar seduzido,
apaixonado, arrebatado.
kjh
Fizeram pouco de mim, no processo. Esmagaram-me no processo.
Trituraram-me a alma no processo. Uns de desprezo. Outros de incompreensão.
Hoje remeto-me ao escondimento. Hoje regressei ao meu imenso eremitério feliz.
A minha mulher e a minha filha polarizam-me o coração,
mas sou o mesmo para toda a gente, o mesmo coração,
fora apenas do olhar e do alcance seja de quem for.
É forçoso que eu me esconda, que viva para mim as minhas frustrações,
os meus sonhos desfeitos, as ilusões em que incorri.
lkj
A minha experiência espiritual não era uma linguagem que funcionasse para quem somente
falava o fodilhês ou o quimbarreirosês.
Uma pessoa conforma-se a isto e fica a ver os equívocos...
Pensa: «Eu aqui não faço nada!» Ainda hei-de viver num mundo onde
a par do elogio: «Epá, ele é inteligente e dinâmico!»
haja o elogio: «Epá, o tipo é sensível, inteligente e contemplativo!»
Viver ensimesmado não é defeito nenhum.
Andar por aí a disparar crueldades e segregações sem contemplação,
a pisar no perfil dos outros, na sua natureza plácida, branda, eminentemente portuguesa,
é que dá pontos. Comigo não funciona.
kjh
Por que é que nunca me sai nenhum chocolate, nenhum brinde?
Por que motivo nunca me calha a fava, o cupão premiado?
Por que é que nunca ninguém me valorizou as teorias da conspiração do Azar
como produto metodicamente vendido e servido em Portugal?
O meu olhar pescador de metáforas só pode ser-lhes,
aos chamados amigos e aos outros,
exótico e até alienígena. Paciência!
kjh
Ficarei só no meu recanto.
Cá fora, do lado de cá do frio, oiço agora o meu patrão a cantar
com a sua patusca voz cómica ao seu cómico piano.
Já são quatro horas. Um homem perde-se a escrever estas coisas sob o frio da noite.
Meia casa debandou.
Tenho os pés congelados. Dói-me a barriga. Não posso mijar quando quero e me apetece.
lkj
Abro a porta interior do Pub e o que vejo é imortal: depois do tango, vem o merengue.
Entre uma multidão à média luz, dançando, o burburinho de gente junta,
os dois britânicos de ontem, recordistas do whisky e das gorjetas pausaram.
Tinham dançado como doidos toda a noite e agora estavam ali,
completamente adormecidos, dobrados sobre si,
suspensos sobre uma mesa cheia de copos e garrafas, sem lhes tocarem,
como os dois querubins sobre a Arca da Aliança
só que dobrados inversamente aos querubins da Aliança, que estavam de costas
um para o outro. Britânicos sucumbidos ao álcool é um Além-espectáculo.
kjh
Ei-los que vão sair cheios de álcool. Não querem apresentar os cartões.
Não tencionam pagar. Ontem foram simpáticos e gorjetísticos.
Agora estão a ser completos cabrões e estou a ver que terei de me chatear.
Ora então como é? Tentam atirar-me com histórias de última hora. Resisto.
Um deles é um gorila com dois metros e dez, gordo, com o olhar rodopiante de bebedeira,
é esse que se dobra sobre mim e ensaia intimidar-me enquanto o mais pequeno,
com ar de Fred Astaire, parlamenta comigo, mentindo, dissimulando factos, metendo petas.
lkj
Alto. Assim não pode ser. Percebi o esquema. Morcões moles, à minha mercê,
salvam-se airosos de um enxerto de pancada e de uma queda acidental,
por desequilíbrio assistido pela violenta bebedeira,
da mini-escadaria diante de nós.
Deixo-os deslizar para fora,
como pingos de óleo, escorrendo de um gargalo de azeite,
mas sei onde se alojam e diligências já foram tomadas.
ljk
Querubins cabrões do caralho, havia necessidade de me estragarem a noite?!
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