MINHAS DISFORIAS. MINHA EUFORIA


Depois de um dia de trabalho com 24 horas de acção e actividade plenas,

entre duas horas totais de autotransporte,
momentos bruscos e curtos de mais para a ingestão de algo vagamente alimentar,
aulas a doer e, finalmente, a madrugante vigilância no Pub do costume,
compreende-se que me sinta agora mesmo como que um soldado
acabadinho de sair de uma trincheira de Verdun,
e logo varado, antes e depois morituro,
mas moribundo já.
Agora só com muito e compensatório sono ressuscitarei para batalhas semelhantes.
Mas compreendo de igual modo que as minhas madrugadas
se tornem absolutamente explosivas para o acto da escrita,
o que me agrada e compensa sinceramente.
lkj
Todos os indivíduos que dançam lá atrás,
ou então diante de mim, quando me ponho do lado de dentro,
a sua exaltação dos sentidos, o seu álcool-bebericar em abandonos,
a testosterona que transborda, tudo isto eu capto e absorvo,
tudo isto converte-se-me numa fúria escrevente e permite-me afirmar,
categórico, o quanto cada uma e qualquer de estas madrugadas
me acorda um intenso desejo de expressão,
uma expressão apolvorada, cáustica e doce,
perdoante e impiedosa.

lkj
Os exorcismos que então me acontecem em verbo
fazem-me crocante e pétala em musgo.
Como sou feliz no acto redentor da escrita!
lkj
Um nevoeiro cai místico sobre as ruas.
Casais vão saindo com um tom subcondescendente sobre mim
como outrora os senhores olhavam para os escravos: «Ó preto!...»; «É o preto!»
ou para as mulheres: «Ó puta!...»; «É a puta!».
Sinto, e ao senti-lo mando-os foder entre dentes,
que o seu olhar me apoda: «Ó rapaz!»; «É o rapaz!».
Mas não. Há aqui um homem calado, ou de braços cruzados ao frio,
ou a passar cartões, ou a recebê-los, ou a registar os consumos constantes dos cartões,
ou a encher folhas, densas folhas de tinta, linhas bem geométricas e apertadas,
onde um ácaro talvez se perdesse em labirinto.
Mas por vezes saem com um olhar, pelo contrário, em tom cerimonioso
e salamalequesco, não sei o que se lhes planta no espírito acerca do meu papel
que os torna excessiva e enjoativamente reverenciais.
Quase me sinto implicado em dar-lhes, em retorno, qualquer espécie de bênção.
lkj
Mas as mulheres, meu Deus, por que sofrem tanto?!
Feias, sós, frias, dançam entre si, rodopiando e baloiçando
e ventre-abanando, rabo-gingando, rabo-roçando-rabo
e assaltou-me ser toda aquela sua alegria nisso tão triste e fúnebre.
Entristeci. Deprimi. Fiquei magoado em face daquelas flacidezes, daqueles óculos,
daquelas rugas recusadas, rasuradas,
daqueles corações tão sem homem, tão viúvos, tão sem companhia.
Já vi corpos iguais e no entanto mais realizados do lado de fora deste dionisíaco.
Mas é a noite no seu esplendor e na sua verdade.

O que me faz chegar mais tarde a casa
(em vez de às cinco horas da manhã, somente às seis)
são os retardatários. A música acaba, mas eles ficam por cá, cigarros em riste,
a combinar jantares, a resumir a noite, a burilar elogios e bocas.
E não saem. E não me entregam os cartões, paralisando-me ali de tédio.
Ficam-se.
Deixam-se ficar.
lkj
Se tivessem, como eu, uma cama com mulher à espera, aberta em flor,
não se deixariam arrastar por aqui em tédios. Vá lá, já saem.
Arrastam-se. Deslizam, entregando-me os cartões. Os cartões têm noite dentro também.
Às vezes molhados, negligenciados. Às vezes dobrados, revelam sempre do portador.
Revelam a contenção minimalista e timorata do consumo mínimo
ou os excessos que depois se pagam brandindo notas de 500 euros,
que despertam sorrisos de tão insólitas.
Cuba Libre, Safari, Whisky - noite faz-se disto.
Mas também de muita água de Luso, água das Pedras, água Castelo,
muita 7Up e muita Coca-Cola.
Há umas horas, veio o cantor de serviço, cotovelinamente falador,
aproximar-se para duas de letra, numa das suas pausas e não deu descanso aos meus ouvidos,
dizendo umas banalidades que me obrigaram a dizer banalidades também.
Quando dou por mim, já estou a enfardar com uns: «Pá, não sou um bom pai!»
O quê? «Pá, não sou porque habituei mal a miúda!»
A miúda tem cinco meses e só adormece com doses maciças de colo.
Tudo bem, é um desabafo.
«Pá, o Sócrates está a fazer bem. Pá, sou PS, mas tento ser isento.»
Aí, preparo-me eu para inviabilizar argumenticiamente o músico-cantor fala-barato
e com um whisky-Cola na mãozinha, o que se me revela impossível: ele é mais um daqueles
que corta o discurso alheio com mais uma frase e mais uma e outra e mais outra,
que, portanto, não sabe escutar. «Pá, no geral, no geral!» É no geral, diz ele,
que Sócrates sai aprovado.
Eu, partindo do mais específico, tiro a espécie.
Custa-me ouvir certas coisas desinformadas, superficiais, mas por aí eu tiro o efeito bruto
de um bom marketing político, a sua eficácia real, o modo como resulta,
mesmo junto do primeiro-ministro indiano, que se convence que o 'reformista' José Sócrates
castiga de exigência fisco-sacrificial e assimetria social
a sociedade portuguesa e ainda assim mantém altos os índices de popularidade.
E resulta por muito que os blogues baixem as calças ao sistema,
exponham tanta malfeitoria e cretinice, previnam outro tanto,
o que passa é, «... no geral!» engolível.
lkj
O povo tem sempre intuições certeiras e essas intuições,
passando o crivo da boçalidade grunha, da imbecilidade mais crónica e crassa,
tranformam-se facilmente em servilismo, em doxa, em confiança cega,
benefício da dúvida ilimitado,
como aquele de que beneficia o eterno presidente da Junta da minha freguesia,
que ganha somente porque paga em géneros ao público-alvo votante
para quem se orienta necessariamente: os idosos. Bastam uns passeios, uns jantares gratuitos
e ninguém lhe fará a desfeita de não votar no seu sorriso cheio de vírgulas.
lkj
Líderes como o Zé Sócrates sabem de que plasticina é feito o Povo Português,
aquele povo que também aparece no Youtube, com flagrantes hilariantes, lacunas culturais,
gaffes linguísticas e de raciocínio desprevenido,
bem reveladoras do seu carácter simplório, conformado e feliz precisamente aí,
na simploriedade.
Eu, que não me canso de sublinhar que o auge da realização humana
pode convergir com o auge da derrota e da frustração,
sublinho que tal felicidade é real, é da estirpe da da avó do José Saramago,
mulher de trabalho e sempre virgem nos encantamentos misteriosos de um mundo misterioso,
onde é encantador viver e do qual nos dói separar-nos. Bela sabedoria de avó aquela!
lkj
Agora sai, finalmente, um cliente sem que o seu cartão ostente qualquer consumo,
qualquer carimbo que exprima 'pago'. Estranho.
É polícia, diz-mo. Está, obviamente, à paisana.
Mostra-me o crachá, documentos e a arma lá está,
exibe-ma ali, entalada no cinto ao lado nadegueiro,
segura pelo osso da bacia, como nos filmes.
Diz que há um criminoso procurado que se sabe se acoita aqui, no Pub, e tal.
Mas mais tarde o meu patrão lingrinhas, com aquela pronúncia do Norte,
bem portuense, aclara, entre risos, que o cornudo do polícia à paisana estava era ali
apenas para tentar surpreender a própria mulher, encontrá-la em flagrante deleite,
numa traição explícita e despudorada.
Não sei. Às vezes, os cornos não permitem olhar em frente, pelo peso com que nos dobram,
pela obstrução à mais elementar visibilidade em frente.
Lembram os prémios na blogosfera. Dão-nos. São simpáticos.
Mas algo nos pesa que temos de ir lá buscá-los. E vamos. Mas pesa.
lkj
Com cinquenta e cinco anos e vestígios capilares da era hippie,
o meu patrão part-timesco parece que ainda tem o seu fogo na cama,
a sua regularidade com direito a repetições e tudo
(surpreendo, sem culpa nenhuma, uma conversa de mulheres
onde estas e outras minudências assomam), mas o mal é que mesmo assim,
com tal caudal, não satisfaz, não preenche a quarentona brasileira que o preenche.
Ou é por ser lingrinhas e não ter como desabar sobre ela machezas brutas à bruta
ou é porque tem o temporizador pau-precocizado
ou então é aquela treta do amor, de toda a linguagem do corpo,
da intensidade dos sentimentos,
(para que precisais da intensidade dos sentimentos, senhores e senhoras?!
não vos basta a força grave da gravidade do cio e a delicadeza
subtil de uma monogamia poligâmica para variar?!)
intensidade de sentimentos,
cuja falta traz destesão, desintensidade, deslibido, desmobilização da cona,
preguiça de um clítoris distraído,
fodas, enfim, a solo embora com e dentro de um corpo deleitoso.
lkj
Na verdade, soube-o de fonte segura porque há profilácticas perguntas solidárias
que sempre nos devemos colocar neste mundo gelatinoso e mutante,
é a brasileira quarentona que não é lá muito boa do juízo. É, afinal, lingrinhas na alma.
E o Papageno em todos nós, que não está para grandes trânsitos iniciáticos
rumo à felicidade da sabedoria e da iluminação iniciáticas, diz,
desde o mais fundo de si: «Je nun, da bin ich nicht der Einziger.
Es gibt noch viel meher leute meinesgleichen!»

Comments

Joshua, amigo, faz uma pausa.Isso de 24 horas seguidas é demais! Tens que explicar melhor para eu perceber.
Um abraço
antonio ganhão said…
Meu caro, tu és o orgulho de Sócrates! Produtividade em toda a linha, espero que mal pago.
Blondewithaphd said…
My dear Joshua, would you please take care of yourself? A bit, at least?
We want you ressurrected!
Menina do Rio said…
Uma pausa e bom almoço!
Beijo
Sei que existes said…
Isso são horas a mais de trabalho! Também já as fiz, mas cheguei ao fim super exausta e tu ainda consegues vir para aqui escrever?!
Beijocas grandes
quintarantino said…
Fellini, meu carago, é por essas e por outras que andas trôpego e incapaz de nos pespegar aí com uns novos enredos... dignos do teu nome... ao frio e a aturar pseudo-cornudos... olha lá, pá, quando apareces para o copito da praxe?
César said…
E eu que não me compadeci das tuas horas de trabalho, de todo; não pensei nelas, sequer, até aqui chegar e ler o que os teus amigos te disseram.

Aliás, ganhei eu com o teu trabalho, por cada uma dessas linhas que tanto te compensaram. Os motivos pelo qual te auto-flagelas são os mesmos que me levariam a África, sob a máscara do estupidamente altruista, quando só queria ser eu egoisticamente pobre, inocentemente circunstancial, ignorantemente esfomeado, faminto, morto por dentro e por fora, para devolver essas minhas auto-chagas em sorrisos de ocasião, orgulhos póstumos e, especialmente, palavras dessas, destas, que chegam sempre no pós-orgasmo frio e morto da noite cansada, na depressão da efemeridade de um regresso alugado, até um amanhã que nunca vai deixar de o ser.

Uma noite que me causa repulsa, mas que gosto de viver através dos teus olhos estrangeiros. Muito bom!

http://pedantismos.blogspot.com
César said…
As palavras fazem-se de vida. Eles que gritem "ó rapaz", que bem sei que gostas.

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