OBSTIPAÇÃO ORTOGRÁFICA
O João Miranda sabe da missa a metade em matéria do Ensino da Língua, das dificuldades colocadas à docência, impasses e negaças na metalinguagem, o labirinto, a salgalhada terminológica com que burocratas, pagos a peso de ouro para justificar serviço dentro do ME e em instâncias dependentes, querem revestir de impenetrabilidade e aversão o que despontaria em amor e em acesso ávido a uma das línguas mais faladas e repletas de charme do planeta. Sou globalmente contra o Acordo. Penso na obsolescência fulminante de toneladas de documentos e livros e no custo envolvido de tudo refazer. O Acordo é um acto parolo de uma classe parola de políticos torcionários em quase tudo. Penso no crime de impor e na vaidade de criar submissão a critérios de duvidosa validade bem elencados por Graça Moura, mas não só. Há, porém, coisas nele que vão ao encontro da minha própria intuição e prática de escrita, antes e muito para além de haver Acordo, e a essas subscrevo-as. Refiro-me, por exemplo, ao "novo" regime que grafa palavras justapostas e aglutinadas. Nem tudo no Acordo é o que antecipamos: ofensivamente revisivo, abusivamente fonético, com a rasura dos traços e vestigialidades greco-latinas que mantivemos intactos nos étimos por séculos. Em certos aspectos deveríamos até retroceder à ortografia ainda vigente nos anos vinte do século vinte. Convenço-me que o Novo Acordo se discutirá orto e heterografando. Está muito longe de ser imposto seja pelo Governo seja por quem for. Há limites para a unificação ortográfica ditados até pelas leis da física, da prosódia e musicalidade natural que conformam os registos escritos: serão, sim, os escreventes e escritores da Lusosfera, continuamente reflectindo sobre a Língua Escrita e Estética Portuguesa, a fazer opções lógicas ou de estesia, basta pensar no peso dos latinistas no século XVI, de Camões, para ver a partir dele toda uma revolução contagiante que elevou a nossa literatura ao topo, rasgando um Caminho de abrangência e complexidade por onde temos seguido, nós, os que escrevemos. Nunca estaremos em crise de falantes da língua. A crise é de escreventes apaixonados e conhecedores, universais e intensos como um novo Eça ou um novo Machado de Assis.
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