O DESPRENDIMENTO
Amado falou em desprendimento do cargo, sacrifício que faria, a fim de que um Governo alargado de salvação nacional fosse constituído. Uma das línguas que o socialismo socratista não fala, que aliás despreza, persegue e ignora, é a do desprendimento dos cargos, por mais apodrecidos que se encontrem. Há, por isso, alguém profundamente irritado com as palavras de Amado. Alguém que, como de costume, recrimina as Oposições porque elas efectivamente não podem querer assumir responsabilidades que lhes são alheias, associar-se a um malfeitor, um rei-sol absolutista e aldrabão. Aquele que esmaga, consome, esboroa tudo o que politicamente não seja socialista não merece o benefício da bóia. Nesta história de desprendimento dos cargos em troca de viabilidade nacional e sentido de Estado, o socratismo está-se a cagar. Quer é prevalecer, vexar os demais partidos, eliminar e desconsiderar os demais líderes e parceiros sociais, dividir para reinar e, assim, durar, durar, durar. O País que se foda porque o Amigo de Vara quer estar para durar. Ora, não haverá qualquer salvação nem saída para o cerco externo e a crise com um conflituoso, desonesto actor político, de sôfrega avidez desmedida por Poder, malignos vícios de cegueira irracional, aliás, que nos trouxeram até aqui. Alguém lhe meta isto na dura cornadura. Temo que a mensagem de Amado, sendo um começo de isolamento do cerne dos nossos problemas, será ainda insuficiente, tratando-se da feroz besta perigosa que se trata.
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«comeu o isco,
cagou no anzol»
No essencial, Amado salta fora do carrossel da degradação governativa e salvaguarda-se da derrocada do já insuportável estilo socrático de fazer política, sugerindo as seguintes trajectórias em contramão a Sócrates:
- à dimensão partidária de Sócrates (da qual nunca conseguiu descolar), Amado contrapõe uma dimensão de homem de Estado que coloca os interesses do país acima dos interesses partidários e da sua própria carreira política;
- se para sobreviver politicamente, Sócrates terá que se apegar, como lapa, ao poder, a sobrevivência de Amado dependerá da sua declaração de total desapego do poder (mesmo que estratégica, de forma a isolar e imputar a Sócrates, tanto a obsessão do poder, como a causa abortiva das soluções);
- em contraponto à arrogância e à prepotência socráticas, Amado explora uma postura de abertura, humildade, diálogo e serenidade;
- a sobriedade com que Amado exerce o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros, e que deixa perpassar na entrevista, projecta dele uma imagem de competência, rigor e eficácia, ao invés da bazófia e da megalomania de Sócrates, que o tornam presa de um protagonismo doentio, a maioria das vezes injustificado, distorcido, fútil ou, mesmo, alucinado;
- contraria o optimismo socrático com um realismo e um pragmatismo notáveis;
- exime-se da tragédia socrática e posiciona-se como um referencial de autoridade, de segurança e de confiança para o futuro do PS, sensível aquilo que são as preocupações de uma parte substantiva do eleitorado.
O aparentemente irónico, é que é exactamente o membro do governo que transmite a imagem de maior seriedade/decência (juntamente com Mariano Gago) e que concitaria a maior aceitação para uma solução de governo de coligação, aquele que se disponibiliza a sair. Todavia, Luís Amado transferiu, com esta jogada de antecipação, toda a pressão de abdicação do poder para cima de Sócrates.
Pelo sumariamente exposto, considero que Sócrates não terá Amado, pelo menos no duplo sentido a que a expressão se presta (sem procurar significações mais psicanalíticas), ou seja, terá ficado profundamente desagrado com o conteúdo da entrevista, no modo como o fulmina politicamente, mas também ficou a saber que não deverá contar mais com Amado na perpetuação das ilusões.