MESMICE DE OS MESMOS COMENTAREM OS MESMOS

«Ao fim de certo tempo em contacto com o que se vê lá fora, acessível hoje em dia quer nas televisões quer nos jornais, é inevitável que nos surja uma amarga pergunta. Se me puderem esclarecer, eu agradecia, porque admito que não chego lá. Há pouco tempo comentava com gente do ofício sobre essa realidade que coloca o nosso discurso público, não digo ao nível do Mali mas de regimes capacitários e pré-democráticos, anteriores à separação de papéis entre aqueles que mandam, aqueles que fazem política e leis, e aqueles que controlam, em teoria todos nós. A discussão não foi conclusiva. Comecemos pela dúvida. Qual a razão para os jornais e as televisões domésticas estarem cheios de políticos em funções, deputados, antigos ministros, fazendo o papel de comentadores interessados, de jogadores e árbitros ou de pretensos observadores externos de um meio em que os próprios estão ou acabaram de estar profi ssionalmente envolvidos? Não pretendo queixar-me de ninguém em especial. Como sempre, os humores pessoais são inúteis para o caso. E excluo do problema quem tem cartão partidário, porque pertencer a um partido não faz de alguém um político, nem lhe retira liberdade. Na RTP há um programa semanal em que deputados do Parlamento Europeu debatem as coisas da Europa, que em princípio discutiram antes nas salas apropriadas. Na SIC há debates diários entre deputados sobre os acontecimentos do dia e já sucedeu os ditos deputados acabarem por debater na televisão à noite sobre os debates em que tinham intervindo no Parlamento de manhã, numa curiosa duplicação de debates sobre debates. Se ainda esses políticos aceitassem discutir com outros cidadãos, até seria meritório. Mas não: trata-se de discussões entre políticos, em circuito fechado, ficcionando uma liberdade de espírito que não existe. Olho à volta e não descubro paralelo. Um jornal americano, alemão ou inglês é escrito por jornalistas, escritores, economistas, académicos, isto é, por gente diversa que em comum só tem o facto de não fazer da política a sua ocupação e de dominar ou uma generalidade ou uma especialidade. Os espaços de debate nas televisões são a mesma coisa. A SIC publicita a Quadratura do Círculo como um programa de comentário político. Em sonhos, porventura. Em Portugal, a mera circunstância, fortuita ou planeada, de um indivíduo chegar à política, quer no presente, quer no pretérito perfeito, confere um significado oracular ao que ele tem para dizer. Ninguém aceitaria que o director de uma grande empresa escrevesse por norma uma coluna sobre temas em que a empresa fosse interessada. Aos políticos tolera-se tudo. Não admira que os jornais e as televisões se tenham transformado numa extensão dos pequenos ou grandes dramas da vida política pátria. Em vez de construírem um discurso autónomo e informado sobre o “jogo” do poder, são uma espécie de recreio onde os praticantes do “jogo” se exercitam testando a sua influência e agenda. Podia dar-se o caso de os nossos políticos serem especialmente verbosos e telegénicos. Não são. Podia faltar na sociedade portuguesa gente capaz de formar a chamada “classe discutidora”, para usar uma expressão reaccionária com que era catalogada a burguesia liberal. Bem pelo contrário. Lendo os jornais do início do século XX, uma pessoa esbarra com anúncios colocados pelos próprios políticos, publicitando um encontro ou um jantar nesse dia. À altura ainda se percebia. Não mudámos nada. Existe o país político que fala e o resto que assiste.» Pedro Lomba

Comments

Como diz José Gil no seu ensaio Portugal Hoje: o medo de existir, no nosso país temos este caso curiosíssimo e aviltante em qualquer democracia que é o de os políticos produzirem o discurso e o meta-discurso político. Uma espécie de pescadinha de rabo na boca.
João Sousa said…
É um triste sinal dos tempos quando nos sentimos na obrigação de ressaltar a utilização correcta de "intervindo"...

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