RANCOR. AMOR. LOUCURA

Quem, por esse mundo, segrega silenciosamente um desespero possessivo que urde matar os semelhantes mais distraídos nessa distracção intoleravelmente feliz de mortais? Quem se enoja com o amor e a festa de que os outros mortais ainda são capazes? Quem foi remetido às cordas da falência, ao abismo da fome e só aspira a retaliar nos que passam incólumes e sorridentes a todas as Crises e não estendem a mão humana e auxiliadora a vivalma? O arrefecimento brutal das economias, com a desigualdade gritante e escandalosa que nenhuma livre concorrência justifica, permite antecipar mensagens tão arrepiantes como a de hoje, assassina, gratuita, na Holanda. O individualismo ocidental, sendo a magnífica conquista que é, possui ao mesmo tempo o gérmen venenoso da demissão solidária. Todos os que atascaram e malograram na vida possuem uma percepção alterada da própria realidade e o facto de a prórpia derrota ser matéria de escondimento não permite o acesso natural ao benefício comunitarista de um apoio corajoso, de uma amizade autêntica porque, dentro do individualismo vencedor e meritológico, ninguém assume derrotas, perdas, falências, misérias por desporto sob a comiseração cínica alheia. Esta percepção dilacerada da própria realidade, dentro do isolamento e da abdicação ética de que se é vítima e que se deseja retribuir matando, conduz à abominação doentia aos outros em alto grau tal que qualquer um e qualquer uma pode ser vítima. A loucura não se explica. Matar o semelhante não é uma equação resolúvel cientificamente. Há cem anos, certamente a miséria europeia, a fome europeia, a ambição europeia, o orgulho europeu, engendravam, como um fermento de intolerância e ressentimento agindo na sombra, aquele morticínio geral e tresloucado das Grandes Guerras, intolerância e ressentimento esses que os factos holandeses de hoje, de modo misterioso e simbólico, evocam: «O despiste de um carro que atingiu deliberadamente uma multidão causou quatro mortos e 13 feridos na Holanda durante um desfile para celebrar o Dia da Rainha. Entre a assistência estava a rainha Beatriz e a restante família real, mas nenhum membro desta sofreu ferimentos.»

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