BEBIANA, CORAÇÃO-POCILGA
Bebiana nunca foi uma criança fácil. Vítima de todos os abandonos
e rejeições, maltratada, desconhecedora do verbo e da pele do amor,
Portuguesa, Africana, negra, melancólica, magra, fibrosa,
por Lisboa e mais tarde pelo Porto,
e vegetava em grupos com iguais caracteres.
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Nos anos da rua, deixara crescer um cabelo rasta tão medonhamente imenso,
denso, emaranhado, nunca lavado durante anos, que nenhum olhar a poderia evitar.
Uma fita imunda unia essa trunfa capilar às orelhas e estas ao couro cabeludo
onde nunca a água limpa ou o aroma de um gel de banho ousaram passar caridosos.
Sem casa, sem um comportamento minimamente civilizado, Bebiana saltava
de internamento em internamento, de instituição em instituição,
de grupo delinquente em grupo delinquente. A caspa do crime
estava-lhe no corpo, mesmo que dele se abstivesse.
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à irremediável violência, à desordem irremediável das ruas
onde era puta ocasional, e os seus dentes e as suas unhas,
a sua maldade sádica pura, fruto da evolução e da predisposição,
eram simples instrumentos de prazer malígno
e de sobrevivência indiferente.
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Basta lembrar que quando um namorado brasileiro
se interessou por ela, não a quis logo porque ela cheirava mal de mais
e quando ensaiou tirar-lhe a pútrida fita do cabelo, cortar-lho,
já os capilares das orelhas estavam de tal modo unidos aos do couro cabeludo
que lhe era aquilo uma massa de doer e de sangrar.
A crise de esta moça estar viva aos vinte e quatro anos!
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Adoptada uma vez com catorze anos, foi um desastre.
Cozinhava para a madrinha-mãe adoptiva
e lembrou-se de envenená-la o que praticou dia após dia.
Ter uma obrigação, cozinhar, e sofrer o controlo da mãe-madrinha,
era-lhe a mais negra coceira urticária e por isso resistia,
mas a mãe obrigava-a a comer também de modo que o esquema não resultava.
Ficava igualmente envenenada, tendo sido obrigada,
por um internamento de urgência, a parar com a brincadeira.
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Um pobre de um familiar, tio, homem para quase quarenta anos,
vindo de Cabo Verde, veio certa vez dar a Lisboa,
como um náufrago a mau recife
e acoitou-se entre as barracas de zinco e de esterco,
de tijolos e cães vadios, património de alguma família de algumas vezes a Bebiana.
Bebiana nessa altura não teria mais de onze anos.
Ele procurava emprego durante o dia
todos os dias, por muitos e muitos dias em vão.
Em casa, Bebiana tinha de tratar dele,
de lavar a loiça. Ter de lavar loiça, tal como ter de cozinhar obrigada,
moia-lhe a liberdade livre de quando estava na rua, sobretudo mais tarde,
e associando-se ao peso dos pesados da delinquência e da mendicidade,
assimilando e praticando a crueldade das unhas e dos dentes.
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Certo dia, Babiana fartou-se de lavar a loiça do tio,
rasgou-se, unhou-se e descompôs-se,
e veio para a rua urdir um escândalo gritado, cuspido e ranhosado,
denunciando o pobre imigrante desempregado de a ter estuprado
a meditar na espécie humana vaidoso-egolátrica, sádico-tarantina
e a lamentar não ter fingido reconhecer na sobrinha uma mulher apetecível
e assim salvar-se do despeito pelo seu desdém com o álibi da loiça.
Conta Bebiana que, muito, muito tempo depois, quando o voltou a ver,
estava o triste homem sob um viaduto, aquecendo-se a uma fogueira,
por uma noite fria. Ossos partidos curados. Muitas dores. Impróprio para as obras.
Ambos sabiam ser Bebiana o gatilho da destruição de um homem.
Os seus olhares se cruzaram, o dela impenitente e sádico.
O dele derrotado. Bebiana ainda teve alma para
desabar desalmada uma frase triunfal assassina:
«Estás a ver?! Olha bem para ti. Ficaste a saber
que ninguém me obriga a lavar a loiça!»
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Bebiana, tinha actos e trejeitos de perigo e de imprevisto constante.
Mordeu uma vez uma rival de namoro: enquanto se rebolavam no estalo e no soco,
entre os paralelos gusmentos da rua que uma morrinha babava,
apanhou-lhe Bebiana com os dentes o maxilar inferior,
perfurou e rasgou a parte mole atrás do queixo, em torno do queixo
e durante longos minutos, não largou imitando um cão perigoso.
O sangue da outra a manar-lhe no rosto, a outra aflita com a língua e a voz
comidas da mordedura, preparada para morrer sufocada no próprio pânico.
Foi o brasileiro-pomo-discordiano que veio ali,
entre elas que se desunhavam por ele talvez, a abrir aquela mandíbula
resoluta e pronta ao assassínio, salvando a infeliz da morte.
Eram amigas. Lutaram como animais.
Muitos pontos e um desfiguramento para a vida deixaram da amiga uma ameaça
que Bebiana não temia de todo: «Um dia eu mato-te, podes ter a certeza.»
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E a loiça atirada à cabeça dos homens que a montaram?
Aquela pontaria com o gume dos pratos
que partiam narizes e desatinavam raivas mortíferas?
E aquele morder que desuniu um dedo, de repente bambo, unido pela pele e não mais?
lhe enchera o ventre, encharcando-a de sémen, de álcool e de erva,
era manifesta a habilidade e gosto de a tomar por fêmea e vazadoiro,
e o filho de dois anos com o tal brasileiro,
a quem educava com irresponsável perfídia e ignorância dolorosa,
deixando-o tocar-lhe, introduzir dentro dela a mãozinha, o dedito,
pôr ali a boca inocente, o que justificava com o impropério de que «as crianças
têm de saber o que é a vida», meu Deus!
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A promiscuidade e o desnorte foram pai e mãe de Bebiana.
O brasileiro salvou-a da rua sistémica
tinha ela vinte anos, meteu-a numa casa velha alugada por octagenários
em sistema de república, casa de todas as dívidas, de todas as esterqueiras,
de todos os imigrantes. Fez-lhe um filho. Conflituaram como cães por ossos
por tudo e por nada. Bateram-se como guerreriros na cama
espancando-se e amando-se. Ela queria casar. Ele tinha as mulheres
que queria e quando queria. Ela tinha todos os ciúmes
e todos os desprezos desprezivos e desprezados. Ele agora tinha o filho.
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Um irmão mais novo do brasileiro matara há pouco,
esfaqueando-o repetidamente, um foragido criminoso do Brasil,
ao monte e ao alto, traquilamente em Portugal, como turista.
Fora em legítima defesa e sob grosseira provocação num rançoso Pub.
Cadeiras voavam, garrafas, corpo a corpo, alguns homens socavam e estrangulavam.
O irmão tirou do bolso um pequeno cortador de vidro e em punção repetida
espetou-o às cegas no peito do outro, um filho do Demo, provocador, violento,
gangster acabado, cruel, capaz de todas as maldades gratuitas.
Agora estava preso preventivamente. As ameaças de vingança
começaram a chover até no improvável telemóvel de Bebiana.
Era a hora de ter medo e de fugir, senão por si mesma, ao menos pelo filho.
Uma instituição para mulheres maltratadas serviria perfeitamente:
ali, ela e o seu filho de dois anos desapareceriam dos olhos de todos.
Comments
Bebiana tinha 11 anos quando teve o filho?
Claro que não podia faltar o link para o Público...
Pobre Implume!
PALAVROSSAVRVS REX
Assumindo ser (MUITA) presunção dizer que o conheço um pouco, sei que se está nas tintas para o facto de me ter agradado a sua escrita. Ainda assim não posso deixar de o dizer.
Gosto do que escreve e da forma como o faz.
Possivelmente quando o conseguir ler sem prestar atenção deixarei de o fazer.
Cumprimentos.
E é por isso mesmo que lhe agradeço profundamente as palavras e os sentimentos genuínos que lhe subjazem quando é tão verdade que eu, como outros semelhantes a mim no semelhante lavrar do verso, não as leio, nãs as lemos de todas as vezes e todos os dias. E muito menos em que supomos que nos conhece e aprecia por nos vistitar todos os dias com a sua frase comiseratória ou óbulo mínimo da sua presença assídua.
PALAVROSSAVRVS REX