SCORPIA PEÇONHA


Clara, quando lhe perguntam o que faz, desaba e chora.
Ontem contaram-me dela. Contou-me ela, na verdade, por meio de quem mo contou,
que as lojas dos centros comerciais lhe conhecem os braços
e as pernas impensáveis de laboriosas, vertendo lixívias,
passando abrasivos panos, panos macios, polindo doirados,
abordando as sanitas que filhos displicentes (de pais fartos e ausentes)
usaram pelo fim da noite antes durante ou depois do tédio de um filme mais
muito aclamado pelo sistema das aclamações fílmicas e ainda mais badalado
pelas TVs e agora nessas salas de cinema
que já não enchem.
lkj
Vai ela e vão todas em enxame as mulheres
que limpam os centros comerciais,
quando a madrugada acabou de ceder o seu lugar a mais luz
e podem, mais escondidas caso o desejem, limpar dia-a-dia.
Clara é somente mais uma professora de Biologia
entre as lixívias e derivados, naquela corrida higiénica às alcatifas
e aos pavimentos lisos e brilhantes dos imensos centros comerciais,
onde há menos beatas e cinza fora de acondicionamento:
«teve de ser», diz ela, ao parir a frase. «É mais um part-time.»
Sem colocação desde há um ano e com o T1 atrasado,
apertada pela euriboreal aurora opressiva.
lkj
Mulher só, moça, com três ou quatro amigos,
que lhe alternam gratuitos a cama indecisa no indeciso trimestre
que sucede ao trimestre, bebem-lha, a frase parida,
os amigos que cativou pelo acaso de uma hora mais derreada e deprimida
no condomínio, alguém que passa e levanta a desfalecente desfalecida:
a reformada azeda do terceiro esquerdo, tísicauriculariana,
o casal estéril do rés do chão direito in-vitrodesistente,
a estrábica com o caniche do duplex lantejoulada e Chanel 5.
lkj
Mostra os calos. Abre as palmas. Diz que estudou de mais para ter de aceitar isto.
E agora compete para ser a melhor e a mais enérgica
agarrada à vassoura e umbilicada à esfregona, de joelhos no lustro,
dentre o enxame de roliças portuguesas e afrodescendentes
agarradas ao carrinho de apetrechos para o efeito.
lkj
A Clara, trinta anos, loura, esbelta, esclarece os ouvintes sobre si,
cada qual pela sua vez ocasional: «Sou muito independente.»
e eles aconchegam-se consolados dentro de si mesmos
por não terem aquela peçonha de vida
marchetada de lágrimas profissionais e mudança de carreira.
Viciaram-se na professora que chora e limpa, é a verdade,
são adictos na mulher de limpezas professora endividada,
com casa para pagar, talvez leviana, talvez fácil.
lkj
Viciaram-se nela, percebam vocês aí isto, ó campeões da merda.
Ligam-lhe muito para lhe fingirem condescendência e interesse puro,
telefonam-lhe para existirem para ela,
invejando-lhe a cama concorrida e a juventude,
a miséria que vibra e se sente e se rebela pujante de vida pungente,
invejam-lhe o génio oposto às lágrimas com que catarseia o íntimo,
génio bipolar que lhe é scorpiocauda, ferrete e acicate para sobreviver.
lkj
Viciaram-se nela. Um desejo de estar perto e não ajudar em nada,
só para lhe derramarem palavras omissas e sornas: «Vai melhorar. Isso passa.»
Nem uma cenoura partilharam com ela, nem um rabanete, nas suas barbas carentes.
Viciaram-se nela somente e na sua história sem final.
E consideram-se seus amigos!

Comments

Blondewithaphd said…
Speechless in thy words, o rex saurus!
Anonymous said…
Joshua, só um ser sensível e radioso como tu se lembraria de assim homenagear as Claras deste mundo ... as quais, muitas vezes, nem nos apercebemos da sua existência quando por elas passamos nos centros comerciais!
Joaninha said…
E pronto, vou almoçar com os olhos vermelhos.
Não se faz Rex, não se faz, descrever com tanta alma as claras deste pais, mereciam todos os que sofrem serem homenageados por tamanho "potencial" portentoso como tu.

Beeeijos
Tiago R Cardoso said…
Realmente de cortar o fôlego...

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