MANIFS TARDIAS EM TEMPOS KAFKIANOS


A parte ultimamente mais delapidada dentro do Ensino,
delapidada no corpo e no espírito, lapidada, portanto, na sua dignidade primordial,
prepara-se, pois, para mais uma manif. O edifício feito de vento,
mero labirinto e mera compressão gratuitos, máquina kafkiana de erodir gente,
estrutura que foi montada para cercar a classe docente de todos os factos consumados,
num ímpeto mais moralóide que moralizador, além de estar a ruir fragorosamente,
a despegar-se e a desfazer-se como um barracão mal gizado,
está a averbar uma massa consciente de cansaços e de rebeliões,
só não sabemos se consistentes, duradouros ou sequer consequentes.
Portugal é Portugal. Itália é a Itália, onde, por muitíssimo menos, pára tudo.
lkj
Num país normal, normalizado e dentro de uma norma básica de gratidão
por décadas de sucessos e de milagres humanizadores do seu tecido social,
toda a gente se levantaria contra a eleição da docência como o cerne
de todos os males, quando a génese de esses males é tão profunda,
basicamente económica, se por economia entendermos
uma forma de aceder ou não aceder aos profusos bens culturais
e às competências de descodificação e capacitação correlatas.
lkj
Mas no momento em que se pratica a simbolização do professor irrisório,
remetido ao estatuto de amanuense, rebaixado perante o portátil e as transições obrigatórias,
eleito para o desrespeito e a violência como atmosfera natural entre a população,
no momento em que se consumou a multiplicação dos peixes e dos pães,
com resultados de exames ridiculamente roçando o mais parolo facilitismo milagreiro
para lisongear a estatística e branquear a vergonhosa realidade afinal complexa,
tarde, portanto, nesse mesmo momento parecia ironia laborarem os vários movimentos e sindicatos em desacordo pelo cagarrinhoso motivo de uma data definitiva e unitária
que envolvesse e englobasse toda a classe na expressão de profundo descontentamento.
ljlj
Só isto é sintomático do estado infernal, babélico, labiríntico, kafkiano,
em que jaz a parte e o todo do Ensino, porque assim o enterraram
luminárias-Valter e Torquemadas-Lurdes, com seu péssimo uso da língua portuguesa
e o ainda mais péssimo manejo de conceitos modernos, tais como negociação,
multilateralismo, convergência, sinergia, bom-senso, sobretudo este.
Porque este povo português e docente só se toca in extremis,
quando está mesmo, mesmo, a acabar de ser comido,
é difícil determinar com que músculo e com que unidade
se soltará do colete de forças em que o querem endoidecer e assassinar
da mais crassa irrelevância sapiencial. Tais processos,
que nos trouxeram até ao ponto presente, enquadram-se no plano da
mais pura e intrincada psicopatologia.
lkj
O certo é que nunca imaginei poder ser tão real para os professores portugueses
o que Kafka concretiza na densa provocação dos seus artefactos literários,
nos quais as personalidades são por vezes representadas metaforicamente
por animais ou com eles se assemelham [no conto A Metamorfose
a personagem principal é uma barata, insecto em que um caixeiro-viajante
se encontra transformado, ao acordar, depois de uma noite de sono],
e não se trata aí de um pesadelo ou de uma alucinação, mas, sim, de um facto social,
de tal maneira que o cidadão Sanza deixou de ser gente
e agora não passa de um espezinhável insecto.
ljj
Não é preciso um doutoramento ou grandes habilidades em exegése literária
para descodificar suficientemente o por que quereria Kafka enfatizar,
dentro de um contexto não mais que singelamente social,
o facto de um ser humano poder, de um momento para outro,
metamorfosear-se numa barata. Por vezes, a literatura prenuncia
e antecipa as loucuras futuras e os loucos do futuro,
mesmo sem os preconizar. Mas também as vítimas
e a sua trágica passividade!

Comments

Tiago R Cardoso said…
este está difícil para um deprimido, vou ler outra vez...
Tiago R Cardoso said…
olha, vou ter de aproveitar o teu curso que anunciastes no "Em Livro"...

As dores dão cabo dos meus joelhos, tão grandes como as dores de um sistema injusto e triste, que coloca a culpa de tudo nos pilares do próprio sistema.
Pata Negra said…
Está tudo à espera pelo bater no fundo! Joshua, tão professoral que és no verbo - e no princípio é sempre o verbo - desmonta-ma! desmonta-me a ministra! Ela desmontada não é nada!
Um abraço a queimar em lume brando
Patrícia Grade said…
e como insectos que nos tornamos, meu amigo reptiliano, ao sistema insectivoro nos rebaixamos, espezinhando-nos uns aos outros, todos ao mesmo nível ou a níveis mais baixos, sem nos lembrarmos que há niveis mais elevados a esmagar-nos.

Pois é, Kafka no seu delírio tresloucado, assim como os surrealistas antes dele, entenderam a coisa como ela é - todos nos transformamos no pior de nós mesmos e a corrida pelo vil metal é o que nos torna nos vermes mais desprezíveis...
Pudessemos nós ser seres iluminados e viver apenas do ar...
psergio57 said…
Identifico-me a 200% com o que está escrito. Este processo de apagamento da memória colectiva (o cidadão-consumidor cada vez menos o 1º e mais o 2º, o saber menorizado, etc ) é uma teia bem urdida de contornos tebnebrosos...
Joshua
Deixo-te um abraço e ressalto esta expressão do teu texto que achei fabulosa:"...no momento em que se pratica a simbolização do professor irrisório,
remetido ao estatuto de amanuense, rebaixado perante o portátil e as transições obrigatórias,..."

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