PORTUGUESES REMEXEM O LIXO

A cena não era vulgar. Não o era ao longo da década de noventa. Não, há quatro ou mais anos. Mas já é e pode ser vulgaríssima doravante: que os portugueses remexam os lixos à procura do que calhe, numa triagem qualquer miserável. Que se acotovelem em filas pauperssopeiras. Que se amontoem no Banco Alimentar. Que homens feitos voguem sujos pelas ruas numa mendicância por trabalho ou noutra mendicância vexatória qualquer. Eu vi. Aquela fileira de contentores verdes contra um muro alto, camarários, tinham a face penosa do inesperado. Dois ou três homens, na casa dos quarenta, remexendo o conteúdo. Lembrei-me ali mesmo da similitude com um fuzilamento: socialmente fuzilados por uma negligência irresponsável nas políticas do deixa-andar plutocratizante, do quem quiser que sobreviva, se puder e 'nós deixarmos'. Encostados contra um muro. E pergunta-se a que mundo pertencem esses outros que falam em baixar os ordenados mínimos e que se enfastiam por o Estado cumprir as suas miserandas obrigações sociais de suster a pobreza, alimentar os famintos, fora os excluídos de todas as ementas e estatísticas oficiais ou mandados trabalhar, apesar de piores que tísicos. Pergunta-se se estão dispostos certos indivíduos, abonados e avalizados por subsídios de Alto Favor e Alto Privilégio do Estado, a ver regredir o velho panorama de concórdia nacional, se estão dispostos a ser visados por uma nova raiva e assaltados com um inédito furor. Provavelmente não. Mas também não sacrificam um almoço no Gambrinus por ninguém. Talvez ninguém se sacrifique por eles, quando for necessário, a esses Mesfistos destinados a infausto fim.

Comments

Lura do Grilo said…
Uma verdadeira tragédia que oprime o coração de qualquer cristão. Não ter que comer deve ser a coisa mais triste e a maior humilhação de um ser humano. Não censuro quem rouba para comer e não exerça violência.
Pagamos 50% de tudo o que ganhamos em impostos: será que não chega?
alex said…
Amigo.
Ninguém com sentimentos pode ficar indiferente a este texto .Eu também já vi há noite homens e mulheres a remexerem no lixo dos supermercados acotovelando-se para levar a melhor parte.È triste,muito triste porque desde homens a velhotas havia tudo a baterem-se por um bocado de pão ou fruta podre,a pobreza envergonhado cresce a olhos vistos. Mas os senhores continuam a almoçar no Gambrinus.Nesta altura de crise gravissima por que passamos um almoço no Gambrinus só servia para vomitar de nojo de nós próprios.

um Abraço
Marcos Santos said…
Pois por cá, os catadores antigos estão tendo dificuldades em manter seu padrão. Com a queda no preço do alumínio e do papelão, passam o dia a cata de recicláveis em troca de alguns míseros centavos. O Brasil é o maior reciclador de alumínio do mundo, tudo isso a custa da miséria de quem, sem alternativa, os cata nos lixões. O serviço, apesar de insalubre e penoso, trazia retorno financeiro aos catadores, mas a nova ordem está penalizando essas pessoas. É globalização do lixo.

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