CARRILHO, PUNHOS DE PAU. PÉS DE AÇO
Não interessa agora nada quem tem razão na grande e dispensável novela pública Bárbara vs. Carrilho, embora este último não se poupe à hostilização canina da ex-mulher e ao desbragamento revelador ou ocultador de uma intimidade morta e enterrada com ela, matéria a que deveríamos ter sido poupados. Não faltam por aí exemplos de como, por causa dos filhos ou do pretexto deles, a loucura toma conta da razão e o desvairamento toma desproporções e razões que a compaixão e o bom senso desconhecem: qualquer um de nós pode ser algoz ou vítima; qualquer um pode ser acusado injustamente de acções não praticadas nem praticadas com o sentido que se lhes dá, apenas por fusão sináptica e obsessão dos acusadores. Não é preciso ser-se displicente. Basta ser-se humano. Bárbara, no seu disciplinado silêncio e nas marcas do seu enorme sofrimento, consegue fazer avultar a sua dimensão de vítima absoluta, mas não será essa a matéria que me interessa aqui e explorarei neste post.
É imperioso salvar o que mereça ser salvo em Carrilho. A fragilidade das pessoas, nas suas taras e derivas, nunca cessará de nos surpreender enquanto formos vivos, mas ninguém é alguém para julgar seja quem for, excluindo, num plano moral e político e por imperativo cívico, o juízo permanente que nos incumbe a Governos, actores públicos com impacto concreto nas nossas vidas, sobre as suas acções, decisões ou omissões com claras repercussões nas nossas vidas, uns por gastar e comissionar à tripa-forra como se não houvesse amanhã; outros por terem de pagar o terem outros governado à tripa-forra, para isso fazendo recuar o Estado para longe e para fora da vida das pessoas à velocidade superssónica da nossa fome ou, o que não é o mesmo, à velocidade da luz das grandes raivas desmioladas de Esquerda e o seu direito exclusivo ao insulto sem passado ou enquadramento histórico das grandes causas e respectivas grandes consequências. Parte do que Governos fazem de malicioso às sociedades depende do biombo protector de opinadores e suas convenientes cortinas de fumo: por cada vinte câncios, entre 2005 e 2011, tivemos um José Manuel Fernandes ou dois e um ou dois manuel-maria-carrilhos. Por cada cinquenta avençados pagos para debitar disciplinadamente o que lhes for pedido, entre 2005 e 2011, houve dois ou três independentes capazes de metafóricas cicciolinas os quais ousaram escrever o que muito bem entenderam e contrariar-criticar o que finamente observaram.
Haja o que houver, o que quer se tenha passado, não se vá agora destruir a pessoa Carrilho nem embarcar na agenda dos que regressaram das delícias parisienses apenas para se entregarem às suas estéreis vendettas e sempre ambições baixas e ilegítimas. Não vale destituir o filósofo Carrilho dos seus méritos, enquanto cronista e opinador no DN, sobretudo os méritos nos anos recentes, quando justissimamente acusou e justissimamente demonstrou o Mal Público, a Sociopatia lesiva das nossas vidas naqueles que foram justamente alvo da sua crítica certeiríssima, aquando da questão UNESCO-Farouk Hosny e da Maléfica Húbris Socratista contra Portugal e os portugueses, crime sem castigo, que ainda hoje pagamos e seguiremos pagando pesadamente pelos próximos anos. Há por aí um processo que consiste em amenizar a Malfeitoria e branquear o Dano pelo imemorial processo da água mole. Graças a Deus, ainda há quem não dê para esse peditório.
Carrilho espancou muitíssimo bem o lado abusivo e plástico dessa fase oca, seca. Carrilho maltratou com requintes de sádico-robin-wood, sádico-zorro a mais negra e devorista governação de sempre em Portugal. Um homem que escreve bem, persuasivo na palavra, que sabe dizer e sabe pensar, hoje um farrapo doloroso e desorientado é certo, não poderá nunca ser penalizado no estrito departamento dos seus méritos intelectuais, apenas por dar a entender ter falhado de modo crasso e inapelável noutros domínios da vida social e humana. Haja, pois, a devida separação de águas e a justa indulgência com a carne fraca de um espírito livre, corajoso, que foi capaz de afrontar e desnudar o Mal, foi e é capaz de pensar Portugal como poucos.
Portugal deve, aliás, ser tão grato a Carrilho quanto a Fernão Lopes ou o Mundo da ficção ao caçador e tauromáquico Ernest Hemingway e o da literatura universal ao bombista Aquilino Ribeiro. Enquanto parte dos média e dos opinadores avençados, entre 2005 e 2011, escreviam o que eram incumbidos de escrever, Carrilho disse não. Afrontou a Malícia e o Dolo, denunciou o narcisismo amoral e plástico dos coleccionadores de frases feitas e propiciadores de negociatas para amigalhaços; apontou o narcisismo doentio dos incapazes e impotentes de autenticidade na vida pública e política, dos impotentes de verdade e genuíno mesmo em entrevistas supostamente intimistas afinal sem intimidade nem espontaneidade nenhumas: conforme se flagrou Sábado passado, nenhuma humanidade e naturalidade afloraram sequer com Daniel Oliveira, no seu «Alta Definição», perante quem invariavelmente na face de entrevistados saudáveis e normais uma desnuda lágrima reveladora desliza. Mas não na cara de pau de um homem de plástico, não num grande simulador de cenários, não num armazém vivo de frases feitas.
Poucos como Carrilho ousaram afrontar a abjecção ostensiva africano-tiranizante numa Governação e num líder de um Governo e de um Partido, 2005-2011. Por isso, atente qualquer observador em quem segue por aí rejubilando com a desgraça deste homem. Poderá ver com que alegria vingativa alguns lhe não perdoam ter diagnosticado o mitómano destituído de superego, de sentido de culpa ou de responsabilidade, contumaz incapaz de lidar com a frustração. Não importa o barro quebradiço onde o perfume se acondicione. Importa o perfume. Não importa a embalagem rasgada que envolve o presente ou o brinquedo. Importam os factos e a justiça deles. A verdade é um serviço obrigatório à nossa vida colectiva. A liberdade do meu antagonista está acima da nossa discórdia. Carrilho, hoje com fama de violento espancador de mulheres, não se sabe se com propriedade e proveito, entre tanto putativo desequilíbrio mental e tantos excessos íntimos, pode ter ao menos acertado nisto: na denúncia da tirania, no diagnóstico da incompetência e da vaidade extremas que afinal nos danaram.
Eternamente gratos por isso.
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