ENFARDAR


O Pub onde tenho trabalhado desde há sete meses,
e que era concorrencialmente indiscutível até há bem pouco tempo,
vê-se agora acossado por uma inesperada e devastadora concorrência.
O meu patrão naturalmente sente-se pressionado e já não tem o mesmo desafogo
ou sequer a mesma alegria. Os clientes vêm contar-me os erros que lhe detectam
na gerência da coisa, vêm queixar-se dele como músico, como dono da Casa.
Enfim, fartaram-se de um conjunto de coisas e desejam novidade.
Ele não dá ouvidos a ninguém. Nada do que digam lhe parece relevante.
E até desse autismo de carácter do homem vêm os clientes dar-me conta.
lkj
Com a cabeça às voltas, agarra quaisquer ideias (desde que sejam só dele)
salvadoras e, mais, chega a desejar imitar as estratégias de classe postiça
da mesma concorrência em fase de triunfo
e de absorção de parte da clientela outrora aqui tão useira e vezeira.
Por isso, vai anunciando que quererá da minha parte ainda mais pose,
uma farda - eis o que talvez me espere, para meu pesar e, claro, vai-me pagando
às pinguinhas, conforme lhe dá ou pode.
lkj
Eu começo a ver que não há réstia de esperança para mim. Para onde quer que olhe, a crise.
A TóxicoManuela ontem enterneceu-me. Veio, coitada, muito delicada e cuidadosa,
pedir-me, humilde, qualquer coisa que não consegui ouvir, mas como a tomei pelo costume,
a moeda, sempre a moedinha, a mim e a quem quer que passe, disse-lhe que aguardasse.
Olhando melhor, escutando melhor, olhos nos olhos, como quem rasga
a teia da rotina, compreendi que tudo o que me pedia era fita-cola
para colar uma nota rasgada de cinco euros.
lkj
Era só isso. Quanta ternura e delicadeza me mereceu a pobre moça,
tão marcada pelo tóxicomal, mas tão divina precisamente na sua fragilidade.
Entretanto um moço superficial, com tiques de importantite lá da Foz,
saía do Pub e olhou-a com todo o asco
que se pode estampar num rosto. Não tem o olhar transformado.
Há muito que me habituei a ver cada ser humano,
sobretudo pessoas cujo ser sumido é uma centelha levemente vivente, levemente mortal,
como crisálida cósmica, aguardando uma transformação gloriosa do seu ser inteiro.
O Pub às moscas num negócio que enfraquece de dia para dia,
e me desgosta do peso de me não render a tempo e horas, a mim,
que novamente serei pai e muito vou precisar,
a TóxicoManuela que só depois escuto e compreendo e que ali fica perto de mim,
segurando as extremidades da nota de cinco euros, enquanto eu as uno e colo,
e tudo isto como concentrado de Vida, o meu mundo,
mundo deprimido e em crise que observo,
no meu Porto, no meu País.
lkj
Nem me divertiu o desabafo de um cliente
a propósito de outra cliente com quem costuma dançar de letra,
uma mulher casada, que, segundo ele, muito o requisita para além do conveniente,
ao apelidá-la de Electrodoméstico Sexual, Rolls Ryce do desempenho,
porque, na cama, faz tudo, tudo bem feito,
tudo de acordo com os livros,
tudo de acordo com catálogo, com menu completo e com alguns extras.
Que a mulher é fogosa e toda iniciativa, toda loucura esfomeada,
por ser assim a sua natureza «e sei lá e o caralho» diz-me.
E acrescenta que ele só contribui com a tumefacção túrgida das vergonhas
e fica a assistir à massagem geral competentíssima,
como a um filme de que é único e privilegiado espectador.
Não quer problemas. Tem de evitá-la. Ela é casada. Tem outra de quem gosta mais
e que se descobre é o terramoto.
lkj
Não. Não me diverte ouvir histórias e brincar e rir do riso alheio.
Desanimo como um Tibete amordaçado. Pereço como um Darfur esfomeado.
Enfarda-se em Portugal. O País vê desertarem dele imensos cidadãos
que já não suportam tanta penúria. Falta dinheiro ou morto e paralisado
ou retido pelos mesmos de sempre. O trabalho esmaga. Não liberta nem permite o sonho.
Mau fado sentir que o azar e a penúria, (a inveja, a insensibilidade e a mesquinhez
que as promovem e generalizam), são água que me cerca-ilha por todo o lado.

Comments

Blondewithaphd said…
Sinceramente? Talvez o teu melhor texto. Li-te à séria, despercebendo-me (existe?) de que não estava em suporte papel mas num blog pessoal. Obrigada!
Anonymous said…
Curti-te!
Bué, pá ... mas estás um escriba em catadupa, antes ... persistes.
Tiago R Cardoso said…
excelente, era isto que dizia, estes textos são excelentes.

Estes textos como todos os outros, grande momentos que tem de ser lidos por completo, todas as virgulas, todos os pontos.

(farda?)
antonio ganhão said…
Esta é a tua veia, meu autista de musicas rex. Os clientes deste pub protestam, contra o serviço aqui prestado, mas ele escuta? Não!
Rita Nery said…
Confesso que não li todos os textos para poder estar certa do que vou dizer, mas como até costumo ser certeira nas minhas intuições... e sem medo de arriscar...diria que este é o unico texto teu realmente, não que não tenhas escrito os outros, mas este texto veio de ti, do teu coração, da tua alma. Quando escrevemos o que sentimos não precisamos por norma de introduzir palavras bonitas, ou sonantes, ou até mesmo vagas, bastam as verdadeiras, aquelas que realmente nos consomem e fazem pensar.
Gosto da capacidade que as pessoas possuem em falar sobre elas mesmas, ainda que não entrando em detalhes ou transformando o texto num desabafo possível de ser ouvido numa qualquer associação de AA, mas expressar o que nos vai na alma parece-me imperativo num mundo em que a informação nos absorve e quando damos por nós apenas temos opinião, ou apenas conseguimos colocar na mesa o que dá nas notícias, digamos as últimas...e ainda que se tenha posturas muito bem fundadas e argumentadas em relação às ditas coisas sérias...encontro sempre um enorme vazio dentro dessas palavras, um vazio que me faz ler, gostar, mas não ser capaz de comentar. Porquê? Porque simplesmente não me apetece...e sabes porquê? Porque isso a mim não me diz nada, o que me diz muito e muito mesmo, são as pessoas enquanto pessoas com sentimentos, mesmo que de ódio, e não os cargos que ocupam e as asneiras atrás de asneiras que cometem.
Somente o ser humano me interessa. E não muitos!:)
Aqui falaste de ti...eu gosto desse formato...gosto de ler as pessoas nas entrelinhas, da simplicidade astuta que se impõe quando algo nos magoa, ou nos faz sorrir.
Posso estar completamente errada, e por favor corrigi-me...se calhar é do sono...acho que lutar contra o sono faz parte da solidão, mas isso já são outras conversas!!:)

Beijinhos

Rita Nery

E se quiseres visita-me!!

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