FORA UMA NOITE TRISTE
Porque este país não é nem para velhos nem para ninguém no seu perfeito juízo,
vieste, Margarida, falar-me, há pouco, de ti, da tua vida,
e dizer-me que partias em breve para o Canadá, ufa!, estavas farta!,
que não querias estar aqui a ver a tua mãe, de noventa e cinco anos,
entubada e senil,
a largar vela de esta vida
com a indignidade do respectivo suporte artificial,
que não o suportarias,
e que toda a desentubarias para que logo zarpasse, se to fosse consentido,
que estavas farta disto, desta gente infeliz apenas sôfrega por dinheiro
e não por amigos e paz,
que estavas farta de esta gente invejosa, tacanha, medíocre, limitada,
incapaz de solidariedade,
e que ias para o Canadá, onde se respira Civilização,
uma sociedade organizada e se vive bem,
sem estas tretas portuguesas de doutores e engenheiros, hábitos de segregar,
de encher de estatuto fátuo a nossa deplorável merda mortal e pelintra.
lkj
Vai, Margarida! Vai para o Canadá. Tens lá família. Já lá estiveste,
como em praticamente todo o mundo e sabes bem do que falas,
tu, que tanto podes ter estado a palrar ao lado do Mário Soares, num jantar de gala,
como a declarar a tua afeição às tuas leais empregadas
ou, coisa tremenda e não recomendável!, a beijar-me no rosto,
ao chegar e ao partir,
a mim, o porteiro do Pub,
para escândalo das filhas das putas das tuas amigas,
que não encaram bem esse facto,
podres de chiques, mortais e caducas,
igualmente sujeitas aos mesmos maus cheiros autogeráveis,
como eu, ao passo que tu me assumes como assumes toda a gente
por igual e como igual.
lkj
E vais, tu, que viveste aventuras atrás de aventuras,
na Índia Colonial Portuguesa, abruptamente invadida e ocupada pela União Indiana,
como te chocaram as vestes da casta mais inferior, menos que africanos,
numa nudez escandalosamente miserável e imunda,
a beber no rio, a cagar no rio, a lavar-se no rio porque tudo é Ganges e portanto sagrado,
a recolher os lixos, deles vivendo,
os dejectos das demais castas a eles superiores porque sim.
E me relataste as peripécias da evacuação portuguesa rocambolesca
e o transvio, por alguns meses, nos mares asiáticos de alguns dos evacuados
nos navios mercantes internacionais de ocasião, dada a aflição.
Ai, os pormenores da pistola e da estatueta Nossa Senhora de Fátima
por que zelara a tua mãe com adunca garra!
E estiveste na Guiné e em Angola, onde nasceste, coloniais,
nesses paraísos de aborígenes excluídos do Ensino,
da Formação Profissional, do Ler, do Escrever,
onde não se fomentavam Quadros Originários Locais,
o tal grande e clamoroso erro colonial português.
lkj
E agora vais para longe desta piolheira absoluta
e intragável para ti, chamada Portugal,
um lugar Governado por Ladrões,
Pilhado desavergonhadamente por Ladrões Governamentais, declaras-me!,
de titulares governativos sempre com um olho noutra coisa que na Coisa Pública,
sempre amparados pelos Portentados da Finança e a servi-los como cães fidelíssimos,
e que 'jamé' poderiam ter o interesse do País como Valor Absoluto,
porque para isso teriam de ser Monarcas e tão no topo e acima dos interesses pessoais,
que impossíveis de corromper, traindo-nos pelas lentilhas de um Lugar Gordo.
Partes, Margarida, partes para longe de este sítio deploravelmente fatal
para o pensamento sequer da Justiça quanto mais da Equidade vivida e praticada.
lkj
Quando muito, Asinina Equinidade de uma atroz exploração do nosso suor e nada mais.
lkj
Vais, Margarida, vais porque podes e fazes bem, já que podes.
Entre danças de preta loira e azulada de olhos, pela pista do Pub e sortidas para fumar,
resumiste-me o teu carácter e a tua vida.
Dei por mim a declarar-te, sem lisonja, que eras uma grande mulher.
Mas fora uma noite triste.
Todos dançavam como tristes.
Esparsos e poucos pela pista.
Mesmo tu, Margarida, que me falavas e falavas de ti mesma e de como padeceste,
amaste e queres agora gozar a vida, estavas triste,
beijando os teus cigarros, queixando-te de mazelas,
desembrulhando-me muito e sempre a tua própria vida na mesma sofreguidão de a viver,
excitando-me de admiração com o contraste abissal com a minha.
lkj
Eu também estava triste. E fiquei ainda mais triste
quando, feliz da tua felicidade, vi que fui, afinal, forçado a escutar-te
na tua liberdade de vôo,
no teu passado prenhe de aventuras,
no teu amor apaixonado ao teu pai, à tua filha e aos teus netos.
Alegrei-me contigo. Festejei-te. Fazia-te mil perguntas calorosas.
Atropelavas-me os comentários. Era-te irrelevante o que eu dissesse,
que nem escutavas.
lkj
E quando a madrugada morreu, dilatada de cansaços e tristezas,
neste Pub amortecido, dolente, deserto,
e vieste afinal beijar-me, nada mais dizendo, maquinal,
nem sequer «Adeus, Joaquim!»
Vi então que te era absolutamente irrelevante, Margarida,
tão útil como um vazadouro ou um travesseiro, eu, o porteiro,
em quem não se fica a pensar
nem pelo qual se tem de ter consideração.
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