EXTORSÃO GORADA
Tive culpas.
Tive azares.
Tive responsabilidades, mas sendo a hora tão lenta no processo de me amargurar,
amargurando-me o bolso amargo, há muito que alimentei a fantasia, quase sonho,
mau pensamento!, de alguma de estas noites abordar o Arrumador
que durante toda a Noite vocifera e intimida, como um lobo,
a clientela chique do Pub onde trabalho algumas noites por semana,
para ser eu a literalmente pedir-lhe dinheiro.
lkj
Rua acima, rua abaixo, aborda os estacionantes para extorqui-lo
e não é daqueles que estende a mãozinha paciente e conformada com migalhas.
Por isso há muito que imaginara ensaiar extorquir-lho também,
saber como é, fazer de mau.
E hoje consumei a primeira e última extorsão pacífica-desastrada da minha vida.
Pacífica ou animosa, que nunca extorqui um cêntimo fosse a quem fosse.
çlkj
Foi num impulso, quando mais uma vez lhe ouvi a voz longínqua com que, gritando,
exaspera as clientes e os clientes, que tanto o temem.
No seu encalço, surpreendi-o em plena rua
naquela negra safra sobre uma pobre mulher de boa toillete,
acabadinha de estacionar, e que dele se desviava
num percurso em arco em direcção ao meu Pub.
Sorrindo embaraçada, ela tinha aquele asco natural a coisa imunda, impertinente
que por acaso também é gente.
«Ouve lá, deixa a pobre da senhora em paz!», intervim.
E ele, temendo-me, recuou, numa estupefacção deveras cómica.
A cliente passou por mim, sorrindo agradecida, com naquele piscar de olhos que lambe.
É então que me acercodele e atiro-lhe, convicto e seco: «Tens aí dinheiro?»
Responde-me que não, mas, abrindo a mão traidora,
revela-me, resplandecentes, dois euros.
lkj
Tomei-lhos e voltei-lhe as costas. Não protestou. Não gritou.
Continuou agora mais manso o seu negro trabalho em mancha, despessoalizado.
Para ele fora mais moeda menos moeda.
Para mim foi um acto desesperado e simbólico ao meu espírito, justifiquei-me.
A minha licenciatura, a minha pós-graduação, a minha experiência no Ensino Público
ao longo de doze anos desaguaram, afinal, nesta minha irredutível objecção de consciência
a todo o lixo emanado em três anos por este Ministério da Educação odioso.
Rejeito isto visceralmente. É mais forte que eu ter nojo do Preconceito e da Malfeitoria.
As dezenas de e-mails que recebo de colegas, as queixas, os relatos, os desânimos,
as sínteses negociais do meu Sindicato, tudo me desgosta profundamente-Burkina Faso.
Tudo me gera uma aversão terrível, violenta, a Burocratas
aversão que nunca pensei albergar.
E é do de profundis que é este meu nojo que me refugio no biscate do Pub
e nos que entretanto possa vir a encontrar cumulativamente.
É daí que pondero embarcar noutra aventura tardia como Servente na Construção Civil,
foder o corpo nas Obras, mergulhar nas dores dos homens concretos e recolher
aqui, neste meu Blogue Feroz de Carne e Osso, os testemunhos sangrentos da vida
quadrimensional, complexa, para ir esfregá-los na cara
de esses Merdas que nos tutelam.
lkj
A vós, Burocratas, SubHumanos Lobos do Homem,
Maus Vendedores do Sucesso como Produto Oco e do Falso Optimismo,
Equilibristas do Mais Atabalhoado Legislar imaginável, esfrego-vos na cara
a realidade e os sentimentos de quem a vive por dentro.
Podeis continuar a vomitar os vossos números maquilhados:
eu terei por aqui um novo naco de humanidade revestida de Arte Contundente
uma Arte à medida da vossa indisfarçável impostura
e alienante indiferença sistémica por nós, gente da rua.
lkj
Enfim, voltando ao Arrumador, nem a extorquir me desenrasco.
Vejo que cumpro muito mal esse papel.
Converti por um par de horas o Arrumador
numa espécie de escravo Jau António forçado,
que pede em meu nome, neoCamões, e me dá migalhas compensatórias, mas não funcionou.
Não resultou concretizar a minha fantasia simbólica.
Ó grande veleidade minha sentir-me esse Camões fabulosamente desprezado em tudo,
Ó nenhuma veleidade no partilhar das suas dores de ver este País a mesma coisa que ele viu,
tão mesquinho, tão miserável, tão incapaz do Salto Mental
que lhe passou ao lado em duzentos,
trezentos,
quatrocentos anos de oportunidade após oportunidade!
lkj
Só por um par de horas consumei esta extorsão benigna, porque depois o homem
lá se encheu de coragem, acercou-se do Pub,
acenou-me e, quando me aproximei, disse:
«Filhinho, só me faltam dois euros para a bomba, a dose,
que custa sessenta euros! Anda lá.»
lkj
Brinquei. Fiz de conta que lhe dava, não dando.
Perguntava-lhe vidas, coisas dilatórias de ter de lhe dar os seus dois euros.
Mas ele suplicava. Sorridesdentava-me argumentos que, por fim, me amansaram,
me encheram daquele compadecimento visceral e inapelável, bastou olhá-lo olhos nos olhos.
Por isso, devolvi-lhe os dois euros para que a minha consciência continuasse imaculada
como sempre anda nestas coisas delicadas do deve e haver
e para que os nossos mundos voltassem ao claro equilíbrio de todos os dias.
Ele lá. Eu cá. Por vezes oponentes. Por vezes companheiros da mesma miséria.
Perguntei-lhe quantas apanhava por dia. Disse-me que duas e esta seria a segunda.
Estes Arrumadores mentem muito. Faltam sempre dois euros ou um ou cinquenta cêntimos.
«Filhinho, a gente contigo... 'tá-se bem... Tu és um tipo... 'tá-se bem!»,
declarou-me sorrindo aliviado, ao despedir-se,
olhos castanho-claros, cara cómica de palhaço desmaquilhado, velho precoce,
feridas no rosto, a pátina morena do banho longínquo e da poeira dos escapes.
lkj
Não tomo por Arte um cão posto a morrer de inanição num qualquer museu sem vergonha.
Faço do meu protesto, Arte, Arte das minhas dores,
das minhas impressões de injustiça, Arte
e Arte a partir da insensibilidade,
da crueza incompetente tão bem portuguesas,
que observo em doses crassas de estupor estúpido
que sofro na pele, à flor do tacto.
kjh
O Arrumador lá foi feliz com os seus supostos sessenta euros da safra nocturna.
Eu fiquei sem os dois euros que lhe tomara, armado em Fisco Impiedoso daquela rua
e tudo isto foi uma sentida homenagem ao meu Porto nocturno e diurno
e ao meu Norte de Portugal, no seu conjunto, tal como estão e como os vejo.
Esvaziados, empobrecidos, ressequidos, abandonados, desempregados, deprimidos.
Sinto-me feliz por estar como que Exilado do Lado Anódino da Vida,
fora de uma vida pacata, cheio de dificuldades, a contar os trocos.
Sinto-me feliz por seguir sendo alguém que Odeia de mais
o lado empresarial desastrado de este PS governamental
nos seus bulliyings técnicos, sector a sector da sociedade,
tão desastradamente experimentalistas como perfeitamente alheados
do que é Ser Gente tratada como excreção.
Comments
Eu entendo essa tua mágoa, esse sentimento de injustiça, essa capacidade que se perde desviada.
Eu entendo mas... que posso fazer senão abraçar-te?