ZÉ TRINA
Jacques Louis David (1748-1825).
"Marte desarmado por Vénus e as três Graças" (1824).
lkj
Traumatizado pela incorporação nos Comandos, de que se farta de falar,
e por um acidente estúpido e lento de automóvel que lhe roubou um dos olhos
pára no Pub um indivíduo de trinta e poucos anos que,
a cada noite, tem o costume de, ao meu ouvido, me pedir autorização para tudo
(para entrar, sair, ir fumar, ir pagar, pendurar o casaco, levantar do cabide o casaco pendurado),
tudo isto não sem antes me inundar de mau hálito e saliva segredantes
ou a uma ou a outra orelha. É penoso.
Fica-me aqui aquele húmido calor bem dispensável.
lkj
Sem dúvida delicado, anda ultimamente bastante decadente no seu aspecto.
Acelerou-se-lhe uma súbita decrepitude física, um andar trôpego, um não estar em si.
Perdeu os dentes frontais e agora, ao falar, tapa a boca, naquele embaraço natural.
O Zé das Tónicas com Trinas é muito bom moço,
respeitador e repetitivo do que quer que diga.
Mesmo agora, que treleia mais e mais se desorienta.
lkj
Ontem, perdido nas conexões neuroniais,
insistia estranhamente por que lhe fosse eu tirar o tabaco à máquina
e fosse igualmente buscar-lhe um copo de cerveja. Estava a alucinar.
Um amigo interveio. Chamou-o à razão possível.
Depois veio pedir-me desculpa. Simplesmente já não está em si.
As mulheres mais velhas com quem dançava e a quem porventura consolava rente às paredes,
olham-no com imensa pena. Um dos seus amigos, que explica tudo aquilo
com o prado verdejante que o Zé tem andado a fumar,
diz-me que sou um gajo porreiro, e que outro, no meu lugar, não toleraria
nem um terço do que «Tu, por humanidade e consideração, aturas!».
lkj
Fico a pensar que valeu a pena interromper a Escola,
ou ser coitinterrompido dela pelo Sistema,
para que um verdadeiro Niagara de dor e contexto em cada indivíduo,
o mais díspar na economia pessoal, nos bens, no carácter ou na sua falta,
me jorrasse por inteiro em cima, a bem da minha literatura e da minha sensibilidade,
e me permitisse assim esta abundante inundação de gente
e de vida inesgotavelmente aqui, sob o meu olhar desaguada.
lkj
Quando há alguns meses explicava aos meus últmos alunos felgueirenses
as razões por que tivera de abraçar este serviço complementar e em que consistia,
(nessa altura, eram frequentes as mortes criminosas associadas à Noite, aqui, pela cidade),
apreciei, nalguns casos, o lado cruel e canalhento de se ser muito jovem ainda,
e estar vedado compreender a necessidade de sobreviver e empreender sacrifícios.
Além disso, a Noite, a tão mal conotada Noite, merecia-lhes um sorriso malicioso,
bem trocista, que me magoava por injusto, na parte final da minha estada, naquela escola.
lkj
Talvez o seu imaginário estivesse refém da imagem estereotipada
da vida nocturna, com as suas lúbricas odaliscas seminuas
em torno de grossos e cromados varões,
abundantes mulheres livres e prostitutas que entreviam para lá e para cá,
violência, drogas e promiscuidade, coisas dos filmes em DVD que viram,
aparentemente incompatíveis e até ironicamente opostas
à responsabilidade docente. Não sei. Eu lia-lhes bem o desdém e a troça
para com um professor já de partida, três meses depois de ter chegado,
e sempre com o espectro instável de ter de ficar ou ter de partir dali.
lkj
A verdade é que todo o lugar, em especial todo o lugar inesperado de trabalho,
pode bem ser o Hospital onde se convalesce do Pouco Amor.
A Escola às vezes é só um extenso corredor psiquiátrico,
os professores simplesmente pacientes e poucas vezes médicos.
Sei é que a mim o Pub apazigua-me e reconcilia-me com a Espécie Humana,
permite-me ver e aprender um oceano de coisas nas pessoas.
O meu lugar no Pub dava um completo e canónico confessionário.
É uma praia com os seus destroços e náufragos,
exangues náufragos, como o Zé Trina.
Comments
Um abraço fora de muros
(será que se eu continuar a insistir, vou conseguir ?)