SINAIS DE LUZES


Que fique registado para a posteridade, meu amigo,
que quando um de estes dias, com os nossos carros,
numa curva familiar, de repente nos cruzámos,
foste tu que primeiro me fizeste sinais de luzes
e fui eu que, quase em simultâneo, com uma das mãos,
apenas te acenei num autómato gesto reflexo natural de reconhecimento.
Demo-nos um magnífico cumprimento competitivo ocasional e eu perdi em grau.
E perdi porque podia ter buzinado ou esbracejado efusivamente, depois do cruzamento,
ou feito também sinais de luzes no entusiasmo pomposo de reparar que eras tu.
E só consegui acenar-te murchamente com uma mãozita soerguida do volante.
Faróis por faróis, antes os da Nicole.
lkj
Foi tudo muito rápido para ser devidamente processado pelo meu olhar-em-crise.
lkj
Tu, meu amigo, devias saber que em certos dias festivos,
na estrada, por pura euforia festiva que não cabe em nós,
fazemos sinais de luzes ou buzinamos intensamente para mostrar que existimos,
ao cruzarmo-nos com outras pessoas conhecidas e mesmo desconhecidas.
É a vitória do clube, a conquista da taça, o partido que ganha com maioria,
o cortejo de casamento.
lkj
E é bom que elas, as pessoas, todas as pessoas, vejam que estamos felizes.
E é bom que vejam que temos o carro cheio de amigos
naturalmente proibidos de peidar lá dentro,
essa convenção tão veemente em ti
(eu nunca proibi a ninguém de vomitar ou peidar-se no meu carro
e aliás tive sempre quem o fizesse, uma dessas pessoas infelizmente já morreu!)
e evidentemente felizes também porque é excitante
o sentimento de grupo quando se vai em conjunto a um jogo de futebol.
lkj
Já não sei fazer sinais de luzes festivos,
eufóricos, cumprimentadores, meu amigo,
nem que o meu clube ganhe,
nem que ganhe o partido que me calhe ou me aconteça votar.
Ter o carro cheio de amigos é-me impossível e improvável
porque sou difícil, voilà!,
porque nunca tive habilidade ou gosto para disfarçar o meu prazer em estar só,
nem gosto ou habilidade para arrebanhar gente e intimá-la a seguir-me.
Se gostaram de mim e me seguiram foi porque quiseram.
Eu era mesmo mais livros e silêncio.
O tempo da minha alegria exibicionista e sedutora e triunfal de grupos eufóricos acabou, pá!
O tempo de ser tolerado ou desejado euforicamente por gajas de todas as gerações acabou, pá!
Este é só o meu novo tempo de andar fodido e insatisfeito, ó tempo novo e excepcional!,
com o rumo geral das coisas gerais e algumas pessoais por reflexo e efeito das gerais.
Um tempo para ser realisticamente autêntico e profundamente inconformista,
aceitem-me ou rejeitem-me, quero lá saber! Eu sou isto e isto é pegar ou largar.
lkj
Um tempo para fazer estes poemas dolorosos, labirintokafkianos, magoados.
lkj
Não quero ter piada e parecer feliz e bem sucedido,
ser aquele bacano de sempre, sempre desconhecido,
mas depois nem sequer ouvido com o coração e o afecto,
compreendido e aceite por mim mesmo, o leproso, o mendigo, o erróneo, o errado.
Quero foder-te o juízo, mal te apanhe a jeito, meu amigo,
ou continuar a ignorar-te, o que vai dar no mesmo para quem vive em Marte
e anda sempre cheio de razões, reparos e ressentimentos, como tu.
lkj
Tens ainda mais alguns anos, poucos, para continuar a viver alienado e iludido
nessa areia, nessa espuma, que julgas ser rochedo,
fumando o teu cigarro obcessivo,
fungando o lugar vazio do teu dente molar,
gesto primo da unha excrescente, suino canivete suiço, no dedo mínimo,
moendo o juízo a quem te apeteça (tens a mania que és engraçado!),
convidando e intimando os teus favoritos
para aquelas andanças de camaradagem e de amizade
que se transformarão depois nessa tua grande festa de aniversário infalível
e na voz consensual, muito beata e muito de Igreja mas sem Igreja,
de que és um tipo muita'p'rreiro, um tipo fixe.
lkj
Fora isso, talvez um dia possamos conversar como homens,
sem as tuas tretas superficiais e os teus subterfúgios escapistas,
sem as tuas poluições mentais, sem as tuas ideias feitas e opiniões do outro viciadas.
A tua opinião sobre as outras pessoas por vezes é a face amarela da Tirania.
A tua gestão do lazer em grupo por vezes é um Tratado de Exclusão Punitiva,
é repreensão repressiva e assédio controleiro
ao jeito da insuportável e mal-fodida mulher de Fidel com as respectivas noras.
lkj
As minhas tretas estão aqui todas à mostra e,
como vês e sabes (se não sabes também não me interessa para nada!),
não te escondo nada do que penso.

Comments

Tiago R Cardoso said…
É lá, isto está complicado.

Sabes o que é realmente bom, quando dois indivíduos se encontram para um almoço, sem amarras, sem pré-definições de nada, sem ancoras e durante 3 horas conversam e falam livremente sem nada a esconder.

Tu de silêncios, de livros ?

Pode até ser, mas existem momentos para tudo...
Anonymous said…
Compreendo-te, e tu pensas que não!
Leio-te em silêncio, e tu pensas que não!
Aceito-te, e tu pensas que não!

Faróis por farois, os da Penélope Cruz, esses sim!

Se te vir, não te faço sinais de faróis... atravesso-te o carro à frente e prego-te um abraço. Queiras ou não queiras!

Popular Posts