EM LOUVOR DO FORNO CREMATÓRIO
Sinal incrível dos tempos portugueses é que sobre espaço para os vivos e os filhos dos vivos que não se fazem em Portugal — tanto T0, T1, T2, T3 por vender!, tanta gentinha jovem preferindo cães a bebés!, tanta juventude emigrando para as europas! —, mas falte espaço nos cemitérios para acomodar cadáveres, ossadas, para suportar, portanto, a tradicional e canónica, mas talvez cara, inumação católica. Daí que a cremação seja, cada vez mais, a opção preferencial dos portugueses, em caso de morte, naturalmente, se bem que não faltem razões para a mais desesperada e simbólica imolação pelo fogo. Completa-se assim um ciclo, desde que chegámos à Índia, se não quisermos entrar pela reabilitação do conceito "forno crematório" associado igualmente à "resolução" de um problema Endlösung der Judenfrage: a pira funerária, promovida em filmes e sagas, leva a melhor sobre o apodrecimento aprisionado no caixão. O fumo e a cinza vencem a lógica da degradação ou da mumificação, outra das vias possíveis para as exéquias do futuro. O presente passa por que se evolem em fumo alado os nossos mortos, talvez os únicos sobreviventes, afinal, do derradeiro forno crematório metafórico — esta incineração social que se divisa no horizonte, revolução transformadora ou morte, lenta, pastosa e inexorável.
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Ass.: Besta Imunda