FUGAZ SIMULACRO DE REAL

Lembro-me como, a par da obstinada solidão a que ele se votava, caracterizava-o um hábito particularmente excêntrico, talvez autista, que era um infinitivo escrever enrolado sobre si. Sim, nesse tempo, os outros reuniam, fraternizavam, cooperavam no rancor ou na benignidade, eram corpo. Ele, pelo contrário, seccionava-se dos demais. Imiscível com gente, remetia-se a uma espécie de ruminância emparedada a papel e a tinta. Escorriam-lhe da mão as palavras-entes como voo, único consolo ao seu cansaço tão aflitivo. A sua natureza livre em extremo perigava sem essa liberdade habitual de mendigo milionário de si, accionista maioritário das mais valias repletas de sonho vogando por aí. Estava demasiado afeito à extrema liberdade interior para suportar o mundo-minuta envolvente dos homens, mundo anotado e superficial, fugaz simulacro de real quando comparado com o seu perene planeta interior absorto.

Comments

Daniel Santos said…
muito bom se não for autobiográfico.
Anonymous said…
Muito interessante para os outros, na pele dos outros.
para si fica melhor a generosidade da partilha, o olhar cúmplice, o aperto de mão apertado, o beijo, o amor. Nada de solidão.
Tudo de bom,
Rita

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