NO OCASO DO CANGAÇO

Escondido no sertão do Ceará, Pedro Januário de Lima conta a sua história de cangaço nas caatingas do Rio Grande do Norte: «Muito cabra da peste já ficou estirado pelas moitas, mas eu continuo vivo». Pedro tem vários buracos de bala pelo corpo e um lado da bochecha atrofiado pelos tiroteios que já enfrentou. Atira com as duas mãos, tem boa vista e não conversa muito com ninguém: «Só termino minha história quando buscar o camarada que matou meu irmão, no Rio Grande do Norte. Os dias dêle ’tão contados, graças ao meu São Benedito.» Pedro Januário soletrava os dez mandamentos para matar. Misturava o rosário com o gatilho, mas não era um assassino profissional. Vamos vê-lo aqui, ao longo de sua história de pólvora e peixeira, na base da fala mansa e fria. Suas costas parecem até uma cartucheira, de tantas marcas de bala. No canto direito da bôca uma 38 lhe rasgou parte da bochecha, até quase a ponta da orelha. Vai mostrando as cicatrizes e, para cada uma, tem a narrativa matuta de cabra macho. Era festa no Riacho Fundo, pedaço de sertão conflitado. Pedro Januário, nos confins de 1940, montado num cavalo fogoso chegava e apeava de peito pra frente. As cabrochas gostavam do seu tipo de rei, cabra da peste respeitado.
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JAGUNÇO BOA PINTA
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Espichado numa rêde armada na sala da sua casa, na praça principal de Limoeiro do Norte, sertão sêco do Ceará, reafirma: «Eu nunca dei um passo atrás pra homem nenhum. Se a conversa fôr de calma, será de calma. Se fôr de bala, será de bala. De peixeira, tanto faz.» Balançou um pouco até atingir a porta de entrada e deu uma cusparada para o meio da rua. Coçou o queixo, já meio ralo, chamou Maria do Socorro, uma das suas cinco filhas, para esfregar-lhe as costas. O sol estava de rachar. Eram 2 horas da tarde e êle não largava o copo. «Acho bom matar o bicho (beber cachaça), quando me lembro dos meus tempos de cangaço.» Pedro Januário de Lima, hoje com 47 anos no costado, nasceu em São Miguel, Rio Grande do Norte. As andanças pelas caatingas quase não lhe afetaram a aparência, e sua estatura, um pouco baixa, de nada implica. É forte, tem boa vista e atira com as duas mãos. «Eu já fui buscar cabeça de calango verde a quase dez metros de distância. No tempo da minha mocidade, entre 25 e 28 anos, quando não pensava em família, em nada, montava meu cavalo, Gato Prêto, completamente arriado, com um 38 na cintura, cartucheira de 36 balas, 44 escondido debaixo da sela, e me largava atrás de um forrobodó, a parada era dura.» Pedro, ao contar, bate as pestanas e torce os dedos num sintoma de satisfação, relembrando os tempos em que deixou alguns cabras crivados pelas estradas estorricadas do sertão do Rio Grande do Norte: «Em tôda parte que eu ia, a cabrocha mais bonita tinha que ficar comigo, pois do contrário até ela entrava na peia. Pelo lado dos homens, duvido que algum inchasse pra mim; só ficavam espiando. Depois, com pena da rapaziada, comprava uma garrafa de cachaça e deixava com êles. Agora aqui no Limoeiro, vivo da minha tranqüilidade, com minha mulher e meus filhos.»
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DIA DE VIDA OU MORTE
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Para os lados de Areia Branca, interior do Rio Grande do Norte, quando Pedro tinha 27 anos, Rosa da Joana, môça bonita das pernas grossas e cabelos longos, andava meio apaixonada pelo “Rei da Capoeiras”, como era conhecido. Com aquela arrogância de cabra macho, cismou um dia e anunciou que ia carregar Rosa, de qualquer jeito. Gato Prêto estava amarrado debaixo de um pé de oiticica, onde Pedro costumava deixar os bilhetes para a Rosinha. Não pensou duas vêzes. Vestiu a calça de linho branco e uma camisa azul clara de chitão. O chapéu de abas largas não podia faltar. O cigarro BB estava no bôlso, do lado esquerdo. A tarde morria lá para as quebradas do Dendé. Rodava o tambor do seu 38. Roubar Rosa da Joana seria a missão. Ela tinha um cabra doidinho por seu coração. Pedro Januário não gostava nem de ouvir falar nisso. Era um dia de vida ou morte. Às quatro da tarde, partiu, com revólver, peixeira e fuzil. Duas léguas e meia até a porteira da fazenda Girassol, onde morava o seu amor. O boato já estava espalhado. Com a matutada na espreita, Pedro, cheio de coragem, encostou Gato Prêto na porteira, agachou-se com cuidado, para não sujar o linho branco e brilhoso da sua calça, e foi em direção à casa de Rosinha. Antes, teria que enfrentar mata de cajueiros, um riachinho fino e pequena camada de mata-pasto. Mas nada disso importava. Ela tinha as pernas grossas e sabia ninar gente grande. Era tudo para o “Rei das Capoeiras”. A primeira recepção foi um tiro, que pegou na barriga e foi sair lá atrás, pelas costelas. Na hora, Pedro praguejou: «Ah desgraçada. Tô baleado, mas vou aí nem que seja engatinhando.» E foi mesmo. Fulminou uns pestes que estavam de tocaia na Girassol, levou Rosinha e com ela viveu pequena temporada. E esclarece por que a deixou. «A muié tava ficando muito sapeca. Tive que lhe dar uma surra e nunca mais a gente se encontrou.»
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O JUMENTO COICEIRO
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No Limoeiro do Norte, Pedro é um homem de paz. Sua espôsa, Francisca Alves de Lima, é seu braço-direito no bar e restaurante de sua propriedade. Êle adora as filhas Maria das Graças, Regina de Lima, Francisca Edson, Maria de Fátima e Maria do Socorro. Quando a situação está boa, o jagunço arma as suas arapucas sob as carnaubeiras ou perto dos cardeiros para pegar canários. Êsse tipo de pássaro significa tudo na sua vida. Brigas às tardes de sábado ou pelas manhãs de domingo. Tudo seu é bem limpo. Em 10 minutos, sem camisa e com os pêlos do tórax embranquecidos, desmonta seus revólveres e faz uma limpeza geral em tudo. Conversa pouco e grosso. Há 25 anos, Pedro Januário era dono de um bar, em São Miguel, Rio Grande do Norte. Dali, seguiu para a Bahia. Andou comerciando por Juàzeiro e Feira de Santana. Voltou ao Rio Grande do Norte, já casado. Mesmo assim, ainda era valente e disposto. Montava burro brabo, selava carneiros e derrubava bezerro a pulso. Pelo pescoço ou pelo rabo. Tinha um jumento braiador, que deu um coice num velho, seu amigo, quebrando-lhe a perna. Não conversou, pegou o fuzil, encostou na cabeça do animal e, só com um tiro, liquidou-o: «Hoje, só quero graça com meus canários. Êles, minha mulher e minhas filhas.» Sentando no seu restaurante, bebia uma cachaça amarelinha, de fabricação caseira.
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ÚLTIMA VINGANÇA
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«Essa história de turma para matar não adianta. Lampião tinha a dêle. Sempre andei só, com Deus. Enquanto tivesse bala na minha cartucheira não queria graça com ninguém.» Na sua vida pacata, o velho Pedro está lá palitando os dentes numa sombra de oiticica. Sempre ao lado de velhas figuras dos sertões sofridos. Homens que trazem na face o ódio e a paixão, o sofrimento e a bondade. Cada um com uma história diferente para contar. Quem sabe, outros Pedros que preferem deixar o tempo matar as suas aventuras. O ex-“Rei das Capoeiras” também prefere esquecer os episódios vividos em meio ao caatingal. Só não apaga da lembrança que o seu irmão foi morto e o criminoso está sôlto. Ainda não se conformou: «Vou ver se faço minhas filhas estudar mais para depois dar uma voltinha lá pelo Rio Grande do Norte. Estou disposto a vingar meu irmão e depois disso, me aposentar de tudo.» Fêz um riso sério virou as costas e foi-se embora. O Cruzeiro - 15 de setembro de 1970.

Comments

Dailane de lima said…
jenuario de lima e o meu tio avô , vi a vida dele e muito legal
Anonymous said…
jenuario de lima e meu tio avô

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