A BRILHANTE CRÓNICA DO ROSA EM FORMA DE FACADA
«Em directo de Luanda, a RTP serviu, nesta Segunda-feira, aos portugueses e ao mundo — eu vi aqui em Paris — uma emissão a que chamou "Reencontro" e na qual desfiaram, durante duas horas, responsáveis políticos, empresários e comentadores de Portugal e de Angola, entre alguns palhaços ricos e figuras grotescas do folclore local. O serviço público de televisão tem estômago para muito. Alguns dirão tem estômago para tudo. Mas o "Reencontro" a que assistimos desta vez, foi um dos mais nauseantes e grosseiros exercícios de propaganda e mistificação a que alguma vez assisti. A nossa televisão, a televisão paga por nós todos, e que de certo modo é um pouco de cada um de nós afectiva, mas também politicamente, foi a Luanda socializar com os apparatchik do Regime, nos quais deveríamos reencontrar supostamente uma Angola irmã, uma Angola feliz, uma Angola nova. Aconteceu o contrário, porém. Reencontrei nesta emissão, a falta de vergonha e uma elite que sabe o poder que tem e o exibe em cada palavra que diz, não no conteúdo, mas no tom: seguro, simpático, veladamente sobranceiro. Aquela gente — as divas, os engravatados, os socialites
— são ao mesmo tempo a couraça e as lantejoulas de uma clique produzida pela história recente de um país que combinou uma guerra de trinta anos e uma riqueza concentrada basicamente no petróleo. "Oleocracia", chamou-lhe com justiça, há uns anos, a socióloga francesa Christine Messiant, falecida faz agora anos, e que identificou, como ninguém, a natureza do poder de José Eduardo dos Santos, do MPLA, da sua grande família e das suas clientelas. Em poucas linhas, a clique angolana, em torno do presidente, privatizou o Estado, numa teia de clientes da economia política, digamos, num aparelho que controla, por um lado, a segurança e o uso da força, exclusivo e legítimo, claro está, e, por outro, as contas vitais da República, como a do petróleo, a dos diamantes, do Banco Nacional e do Tesouro. Os generais e barões da economia política angolana fizeram ganhos astronómicos, ao longo dos anos noventa, nas comissões dos contratos de armamento, de petróleo, da manutenção militar, por aí afora. E depois usaram esses recursos em todos os negócios sensíveis, estratégicos, as empresas de segurança, as empresas de aviação, os sectores das empresas públicas colocadas em leasing, as companhias ligadas às Forças Armadas e à Polícia, etc., etc., etc.. Um lucro incalculável e, melhor ainda, legal. Como bem explicou também Christine Messiant, o controlo da economia pelo topo do poder político, juntando as altas patentes e o politburo informal do partido, usou e geriu a concorrência internacional beneficiando da conivência, da colaboração ou da assistência de grupos estrangeiros na Banca, no sector energético, apenas para citar alguns. É esta, resumindo, a face verdadeira da nova Angola. O novo poder económico é apenas a nova máscara do velho poder político, uma maquilhagem sofisticada, mas ao mesmo tempo muito óbvia, o batton da ditadura, parafraseando o grande jornalista angolano, Rafael Marques. Num reencontro digno para ambos os povos e ambas as audiências, aliás, teria havido, por exemplo, Rafael Marques, ou alguém que chamasse à corrupção, corrupção, e não, quase a medo, numa única pergunta, "um certo tipo de corrupção", como o fez Fátima Campos Ferreira. Quem se encontra com a realidade de Angola, realidade real, encontra, por exemplo, a violência brutal nas lundras diamantíferas, os despojos ainda da guerra civil, no tecido social e produtivo, a conflitualidade social latente entre quem tem o mundo e quem não é sequer é dono da sua vida, ou a pobreza dos musseques de Luanda que não desaparecem com o cair do cetim vermelho de um Banco como na publicidade que embrulhou a emissão da RTP. Já agora, gostaria de ter reencontrado, nesta emissão, outros portugueses, os milhares de compatriotas nossos, que vão para Angola em fuga de um País sem esperança, daqui, o nosso, como se ia nos anos de 1950 e sessenta, e, como então, enfiados como semi-escravos e semi-reféns, à mercê dos seus patrões, agora angolanos, num estaleiro, numa pedreira, numa fazenda, algures fora do alcance das visitas oficiais recebidas em Angola. Nesta emissão, enfim, Portugal confirmou que, como antes, tipicamente os nossos colonos, apenas temos, hoje, a subserviência quando a situação não permite o abuso. É no que estamos. "Qual o objectivo do investimento angolano no estrangeiro?", perguntava a jornalista a determinada altura. A resposta foi dada pela própria emissão da RTP. O objectivo é "respeitabilidade". Luanda, note-se, apenas compra aquilo que sabe que ainda não tem.» Pedro Rosa Mendes
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Ass.: Besta Imunda