FERNANDO PESSOA VEIO ESCARRAR AO PORTO


Ontem, numa loja espanhola do MiniPreço,
em plena zona do Marquês portuense,
aonde fui por uma garrafa de tinto Vila dos Gamas, Vidigueira,
que me consolasse e acompanhasse a escrita da tarde,
era ele todo, fulfurando, o Fernando Pessoa.
Como que escolhendo livros numa biblioteca,
apalpava-me ali nabos, em plena área dos legumes, debruçado.
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Seboso, com uma omoplata aleijada e saliente,
um sobretudo banal de cor grisalha, uns óculos imortais de há sete décadas,
escolhia, recurvo, encurvado, alguns vegetais — umas cebolas, uns alhos, umas cenouras —,
numa delicadeza andrajosa, completamente pedinte e só.
Avultava nele aquele cheiro a sem-abrigo e a compenetração mais dedicada,
um subtil suor a rebrilhar-lhe nas fontes e a má higiene literária
de um Campos arquejando por mais metro e menos rima.
lkj
De repente, éramos ali apertados, na hora de pagar aquela miséria:
de grelos, ele. Eu, de vinho. Foi quando roçou sem querer no meu corpo,
mais denso e volumoso que o dele,
aquele filamento franzino em figadeiras, e disse: «Perdão!»
Assenti e acenei compassivo. Pessoa cheirava mal.
Um hálito vulcânico veio bordejar-me as narinas.
Mas estava aquela voz repleta de leitura e de loucura,
delicadas, mendigas, solitárias,
e aquele olhar, que me fitou repleto de inteligente,
quase alheado e esverdeado, convergindo num nariz adunco,
que amparava a já referida prótese ocular, relíquia de décadas.
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«Foda-se, Fernando», pensei, «até tu com a tua pessoa resistes e te reeditas vivo
nesta miséria esganada e engolida, toda transferida para onde está a dar. O Porto.»
No Porto, abafa-se a uma tristeza parda, percebe-se nos olhares um desalento cruel.
Pois o meu Fernando Pessoa, naquele MiniPreço espanhol e portuense, pagou. Saíu.
Eu fiquei num certo pasmo reverberativo daquela luz — poemas que declamei,
que vivi, que sofri e eram gente —, enquanto ele escarrava em desespero na berma,
limpando os lábios a um lenço amarrotado e roto que amarelejou surdindo,
por segundos, do bolso. Tudo aquilo era monumental.
lkj
Meu Deus, Fernando Pessoa veio escarrar sobre um passeio do Porto
pejado de caninidades dejectas,
salpicado de miseráveis e miserandas misérias transeuntes.
Não caibo em mim por tal honra: tropeça em mim e escarra-me na nua
um tão glorioso pedinte cultural planetário e outro tanto de morto famoso.
Somos irmãos. Tu cá. Tu lá. Que diria ele de 200 000 a medo,
por estes dias, nas avenidas da Capital Doentia e Medíocre,
tão ordeiros e contidos a representá-lo, Pessoa, e à sua fome e ao seu buraco, aqui,
nesta cidade que agoniza lenta e lenta perece, o Porto?!
Que diria esse meu Fernando Pessoa que vi escarrar na minha cidade,
tropeçar em mim, e que está está vivo?!
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Vivo. Vivo nele mesmo, com o seu sacerdócio por uma Super-Obra.
Em mim, certamente, vivo. Em mim, agora abraçado, por inefável necessidade,
ao meu Vidigueira, Vila dos Gamas. Tinto.

Comments

Anonymous said…
Deixaste-me com saudades dos teu tempos do Bar.

Vou ler uma páginas.
Anonymous said…
...de tinto roxo estão as nossas palavras aos peixes... cianóticas e anestesiadas por tanto abandono tanta cretinice, tanta imoralidade
E nós emborcamos, emborcamos incapazes de dar volta a isto.É preciso reunir as massas e tirar-lhes os votos!

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