CRIMINALIZAR O QUE É CRIMINALIZÁVEL
«Nos últimos tempos
apareceu nos jornais,
a propósito da
responsabilidade dos
políticos pela nossa actual
condição, a expressão
‘judicialização da política’.
Sempre num tom cáustico ou
desconfiado. Como nestas alturas
a velha complacência portuguesa
vem ao de cima, vale a pena
pensar naquilo que pode ser essa
judicialização.
A expressão não me parece
bem empregue. Há muito tempo
que a política se judicializou.
Os juízes são frequentemente
obrigados a “fazer política”, ainda
que o escondam, ou pelo menos a
medir as consequências políticas
das suas decisões. Quando se
pede aos tribunais que julguem
políticas públicas, o que é isso
senão uma forma de judicializar
a política? Quando o Tribunal
Constitucional, como outros,
considera, e bem, o rendimento
de inserção um direito assente
na dignidade humana, não existe
aí judicialização da política?
Quando os fautores do regime
distribuíram uma pletora de
controlos pelos tribunais, não
estavam a judicializar a política? Os exemplos podem multiplicar-se. Em defesa da igualdade ou
da protecção de bens públicos
os tribunais escrutinam
rotineiramente escolhas políticas
e sociais. Podemos dizer, por
exemplo, que o Estado Social
depende da judicialização da
política.
Por conseguinte, não pode
ser a judicialização da política
que, neste caso, atormenta
algumas opiniões. O problema
está então em criminalizar
a responsabilidade de quem
nos meteu neste sarilho. Ora,
devem os políticos responder
só politicamente ou também
criminalmente por ilegalidades
que pratiquem? Devem ficar
expostos a investigações e
inquéritos como qualquer
cidadão, ou a leis, processos
e tribunais especiais? Devem
responder por crimes gerais
ou também por crimes
especificamente desenhados
para as suas funções? E por que
géneros de crimes?
Estas são dúvidas de princípio.
Nada fáceis. Sem dúvida que o
recurso aos tribunais com vista a
punir condutas políticas ilegais
e danosas pressupõe toda a
cautela e razoabilidade. Por toda
a parte as perseguições do poder
judicial contra o poder político
redundaram quase sempre em
vitórias e derrotas para os dois
lados, e com erros e indignidades
pelo meio. Só por isso, a iniciativa
da Associação Sindical de Juízes
de querer levar a tribunal 14
ministros do anterior governo,
por supostas despesas abusivas, é
insensata e gratuita.
Mas o absurdo deste último
exemplo não pode servir,
de nenhuma maneira, para
prescindirmos da criminalização
da actividade política.
Em primeiro lugar, um Estado
que se prepara para usar o
Código Penal para perseguir
cidadãos que prestarem
declarações falsas não pode
ser brando, por razões de
justiça, com os crimes de
responsabilidade em que
incorram os titulares de cargos
políticos. Segundo, não existe
nenhuma democracia do mundo
que não admita algum tipo de
criminalidade especial para
governantes e altos funcionários.
Terceiro, não esqueçamos que,
depois de largar o poder por
vontade própria ou por perder
eleições, resta apenas uma
forma eficaz de responsabilizar
um político: a criminal. E
quarto, quando se sabe que
um ministro, um secretário de
Estado ou um gestor público
autorizaram arbitrariamente
encargos financeiros de milhões
sem qualquer “mandato” legal,
não vejo como é que tais actos
podem ser outra coisa senão
crimes devidamente tipificados.
À justiça o que é da justiça.
Parece-me um bom princípio.» Pedro Lomba
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