FORA DO MAPA, PERIFERIA DA PERIFERIA
«Ler os jornais já não é uma
boa maneira de começar
o dia. Ver as notícias da
televisão já não é uma boa
maneira de começar a noite.
Para começar, porque o
nosso anterior primeiro-ministro nos legou, fora a crise
e a troika, uma dúzia de “casos”
que não deixaram de ocupar a
maledicência pública. E não há
dia em que não se descubra um
novo ou ressuscite um velho, do
Freeport (que tanto na altura
nos moeu) à melodramática
Vasco Pulido Valente
Face Oculta com transcrições
de “escutas” cuidadosamente
esburacadas (ninguém sabe
ao certo porquê) e às novas
trapalhadas da Parque Escolar.
Mas Sócrates tem ajuda. À medida
que o Governo vai investigando o
estado do país, coitado, aparece
uma dívida a cada canto de uma
autarquia ou de um instituto,
que perdeu sossegadamente a
cabeça, sem que nunca ninguém
se lembrasse de o prevenir.
Passada esta introdução,
que hoje se tornou um ritual,
chegam agora os problemas que
o próprio Pedro Passos Coelho
não consegue resolver, como a
EDP e as querelas de secretários
de Estado, e as “boas notas”
que nos dá a “Europa”, com a
condescendência de um mestre-escola e a autoridade de uma
espécie (humana) superior. Pior
ainda, a televisão e os jornais
também foram contaminados por
este gosto pelo “horrível”, e a RTP,
por exemplo, não hesita em nos
receber à hora de jantar com meia
hora de um acidente ou de um
crime de preferência com muitos
mortos. Lá por aquelas bandas
deve existir a convicção de que
lhes pagam para isto. E, com o
futebol (em obsessivo pormenor)
e uns tiros na Síria, a festa está
feita. E é o que, em princípio, os
portugueses sabem, ou querem
saber, da terra inteira.
A pobreza não criou só uma
distância material entre o que
nós somos e a “normalidade” da
“Europa” e da América. Criou
também uma distância cultural.
Verdade que uns tantos jornais
se continuam a lembrar de que
o mundo por enquanto não
desapareceu e que a Rússia, a
América, a China, Israel, o Irão e o
Afeganistão continuam a ser sítios
de uma considerável importância
para a nossa vida. Mas pouca
gente se interessa por essas coisas,
quando o país cai regularmente
à nossa volta. Chega e sobra a
dose diária de aflição doméstica.
Excepto para os que emigram, a
crise acabou por nos tornar uma
tribo que não se vê no mapa,
numa periferia de uma periferia.
Não tarda muito que o João
Jardim de Portugal desembarque
triunfante no Terreiro do Paço,
para tomar conta da “metrópole” .
No fundo, não se notava nada.» Vasco Pulido Valente, Público, 18, Março, 2012
Comments
e desfiles onde não há pobres nem desempregados
a outra assobia para o lado.