PARA SEMPRE, MESTRE MILLÔR!
«Entre 1964 e 1974, Millôr
Fernandes escreveu
regularmente para o
nosso Diário Popular. Não
digo que foram esses os
seus anos mais férteis,
porque até aos 88 manteve
uma genialidade constante,
insofismável. Mas foram anos
em que o talento de Millôr
andou especialmente à solta, no
desenho e na crónica, na revista
Pif-Paf, na colecção de maravilhas
das letras brasileiras que forjaram
O Pasquim, publicação subversiva
e revolucionária, que em Portugal
talvez tenha paralelo na revista
Kapa. Esses foram também
os anos que culminaram em
Trinta Anos de Mim Mesmo, livro
publicado em 1972 e um bom
ponto de partida para o que
Millôr escreveu nas primeiras
décadas.
Em Portugal Millôr não sabia
que tinha um leitor no governo:
Salazar. Diz-se que, comentando
com algum ministro as suas
crónicas, Salazar terá soletrado:
“Este gajo tem piada. Pena que
escreva tão mal o português.”
Difícil não ficar siderado. Como
era possível que Salazar achasse
a prosa de Millôr mau português? Mau português as Notas de um
ignorante, uma das mais belas
crónicas da nossa língua? Mau
português as centenas de frases e
aforismos de Millôr, hoje reunidas
em A Bíblia do Caos?
Millôr deve ter sabido da
história. Em Currículo, um texto
tipicamente millôriano, porque
desafia as leis gramaticais e
outras, ele escreve um texto que
funciona como sucessão de frases
cortadas, omitindo sempre o
facto essencial:
“Millôr Fernandes nasceu. Todo
o seu aprendizado, desde a mais
remota infância. Só aos 13 anos de
idade, partindo de onde estava (…)
Quando o conheceu em Lisboa, o
ditador Salazar, o que não significa
absolutamente nada.”
Mas não é estranho que Salazar
tivesse embicado com o estilo
de Millôr, ou com a ausência de
estilo, já que o brasileiro se definia
precisamente como um “escritor
sem estilo”. Estava ali o choque
frontal entre um ditador e um
humorista. Um ditador pensa que
é o mais livre dos seres, quando na
realidade é o mais enclausurado,
preso às malhas que sustentam
o seu próprio poder e à ilusão
que estabelece no povo. Um
humorista, pelo menos como
Millôr, só pode ser um espírito
livre, desafiando todos os poderes
e todas as normas; só pode ser
radicalmente contra a obediência
imposta, o politicamente correcto,
a subserviência de quem diz
que sim a tudo, de quem segue
cartilhas, de quem age e pensa em
manada. “Nada é mais falso do
que uma verdade estabelecida”,
diria Millôr.
Quando em 1968 Millôr se
apresentou aos leitores para uma
coluna na revista Veja, começou
assim:
“E lá vou eu de novo, sem freio
nem pára-quedas. (…) Quem é
que sou eu? Ah, que posso dizer?
Já não fazem Millôres como
antigamente! Nasci pequeno e
cresci aos poucos. Primeiro me
fizeram os meios e, depois, as
pontas. Só muito tarde cheguei
aos extremos. E não me revolto.
Fiz três revoluções, todas
perdidas.”
As pequenas prosas de Millôr
Fernandes, contos fabulosos,
composições lúdicas, às vezes
exercícios surreais, outras vezes
manifestos tão humanos quanto
cépticos, foram a âncora de um
homem que questionava tudo
e, por isso, também olhava a
esquerda e a direita com o mesmo
realismo cínico: “A diferença
fundamental entre direita e
esquerda é que a direita acredita
cegamente em tudo que lhe
ensinaram, e a esquerda acredita
cegamente em tudo que ensina.”
Na América houve Mark
Twain, que tinha também uma
imaginação prodigiosa. No
Brasil e na língua portuguesa
houve Millôr Fernandes. Ontem
morreu um génio.» Pedro Lomba
Comments